Apresento algumas considerações à discussão sobre transdisciplinaridade. Elas são sediadas no desenvolvimento de duas pesquisas científicas realizadas em campos diferentes, a saber filosofia e comunicação. O assunto pode ficar interessante.
De um jeito simples, transdisciplinaridade é quando campos distintos da ciência colaboram mutuamente. Mas não somente influenciam ou são mencionados, trabalham juntos e se modificam. Exemplo: é o caso da artista Ana Bellenzier ter pesquisado arte (um campo) na geografia (outro campo). Voltemos as minhas impressões.
Minha primeira pesquisa passa pela recepção da comunicação política na filosofia da psicanálise. Esse acúmulo de palavras pode fazer soar menos simples do que é: estou fazendo uma psicanálise da democracia digital do Brasil (são conclusões preocupantes).
A filosofia contemporânea tem se permitido prestar atenção na vida política, e eu anotaria que a partir de abordagens notadamente pragmáticas. O uso eleitoral da religião no Brasil e a pandemia de Covid-19 são exemplos temáticos. É uma oportunidade para analisar o tempo presente.
Nesse contexto, psicanalisar a relação do eleitor brasileiro com a política é bem-vindo para a filosofia. Até porque há autores comuns da filosofia, política e comunicação, como é o caso de Flusser e de Habermas. Essa fluidez constitui uma ponte para a comunicação.
A conversa dos campos científicos filosofia e comunicação tem se mostrado rica e promissora. São campos conexos, embora suas constituições históricas estejam distantes cerca de dois mil anos.
Minha segunda pesquisa é sobre a comunicação de eleitores críticos do Supremo Tribunal Federal e dos ministros da Corte. Embora a pesquisa em comunicação seja uma consequência da filosofia, da ciência política, etc, ela agora está estabelecida como um campo próprio.
É quando nos perguntamos: o que tem de comunicação nessa pesquisa em comunicação? O que ela tem de diferente de uma pesquisa na sociologia ou na psicologia? As respostas a essas perguntas podem fazer a comunicação e a filosofia se parecerem bastante. Por quê?
A característica mais marcante do campo comunicação é que ele é uma espécie de espaço intermediário, um vão livre, em que todas as contribuições sobre comunicação são bem-vindas (menos a opinião de influencers — risos). E a filosofia se sente muito à vontade em espaços assim.
Falho repetidamente. Agora mesmo, falhei no propósito de ir para a cama às 21h30. Por alguma razão parecida com “puta que pariu! Eu não durmo mais que quatro horas mesmo”, entreguei-me à deriva da escuridão.
Temo que uma autoridade severa chore para me disciplinar: “não é hora de ir ao banheiro”. Atividades em geral. Os chats da madrugada chegaram ao fim, cobertos de areia, desintegrados por um choque, incinerados. Dá aquele dózinho. Toda aquela literatura caótica que me trouxe tantos amigos enlouqueceu, e fala sozinha nos posts do Mark.
O livro que Maku me enviou é bem escrito, claro, mas é lido em supercâmera lenta. A personagem começa a se revelar a partir da vontade de morrer. Não se encontra gente honesta assim com facilidade. Como torradas com cream cheese e geleia de frutas vermelhas. Foi a caixa, o pote. Troquei por nata. Nata não tem erro.
Esse fractal, então: a morte e a vida se explicando pouco, falando rápido e alto, tal qual turistas brasileiras de batom vermelho e bolsas tiracolo encantando o mundo com uma malcriação sorridente. Minha análise, a seguir, é sofisticada.
Há desafinações da vida que são, é preciso repetir, forças da natureza. Desafinações, neste texto, são metaforicamente Meryl Streep interpretando Florence Foster Jenkins no cinema, ou qualquer instrumento que deveria vibrar um sublime “ooowooowooow”, mas acaba por materializar a Vó Jephinha se aventurando fora do tom, sem melodia.
Gosto da água porque ela não perde tempo com pedra ou muro; desvia, aceita um bom túnel, mas, se precisar, arrebenta com tudo. A água toma para si terrenos que nem vocação para piscina tinham, repousando ali uma inundação calamitosa.
As regiões do mundo que estão para desaparecer precisam de suporte intelectual para resolver questões de propriedade, repatriação e o retorno de burocracias previsíveis. Não se pode erguer uma ilha na parte de cima de um sobrado; nem mesmo catedrais japonesas de drenagem fazem diferença no oceano. Perigos assim equiparam nossa inteligência a nada. A natureza é uma das três fontes notáveis de desprazer na psicanálise freudiana.
“E de todo esse instrumento desafinado eu nunca fui aprendiz.” Há esse verso numa letra de Gabrielle Seraine. E na música dela também, quando se canta “[desa]finado”, quando se canta exatamente “finado”, a harmonia se despedaça por um instante, como uma criança filha da puta assoprando uma flauta de plástico. É o vale antes do topo, o “dark before the dawn”.
Quando o indivíduo desafinado — o “médium” (de mídia, não de falar com mortos) — emite ruídos, a comunicação fica mais nítida. Vamos usar a palavra “comunicação” como um sinônimo futuro para “espírito”, uma belíssima concepção de Flusser.
Nas religiões que lidam com “espíritos”, note-se a similaridade na condução das intenções: portas são abertas e fechadas, pessoas são estimuladas a movimentar a psique, e até mesmo pedidos banais que não passam de burocracias previsíveis. Pede-se, promete-se, agradece-se, expulsa-se, infunde-se — tudo pela conjuração de palavras humanas e inteligíveis.
Aceitar a Jesus, renunciar à maçonaria, declarar a vitória, tomar posse da bênção, fazer macumba para a Dona Ida morrer (criança é muito inventiva) — tudo isso requer falar. Do feitiço do Pai Grego à corrente de oração Sete Batidas na Porta da Graça do pessoal da Janine. Comunicação. Fala. Escuta.
Em alguns cultos evangélicos, diante de uma comunicação insatisfatória, é provável que alguém passe a fazer o papel de endemoniado em favor do grupo. A missa católica tem tantos recursos de comunicação que uma parte do sermão acaba guardada.
Os “espíritos” são assunto antigo, primitivo. Foi o jeito de manter os mortos por perto. Depois, esses mortos viraram demônios. A história registra em termos antropológicos; tenho aqui um original do Frazer que ganhei de Luca. Meu ponto é: se os espíritos “nascem” de mortos domésticos, é natural que, antes de se comprometerem com eventos fora de casa — falando em reuniões espíritas, fazendo vento — estejam disponíveis no inventário da família.
Há poder na psicanálise, na Análise Transacional, nos Narcóticos Anônimos. Mas esses empreendimentos precisam de muito mais tempo, especialização e oportunidades para erros do que se pode alcançar em família, quando uma família está disponível. Família, claro, entenda-se amplamente.
Uma família que tenha compreendido a perenidade do amor, que tenha deixado as lutas por reconhecimento para práticas comunitárias, tem mais chances de sucesso na invocação de espíritos poderosos.
O poderoso espírito do criador, para aqueles que creem assim, tem de fazer alguma diferença. Deus está morto? Não se engane. Escrevo sobre comunicação. Sobre conjurar, invocar, boa comunicação. Na última linha do ruído, “tomar posse da bênção”, como bem observado por Nina.
Em português, “espíritos” são comunicação pelo menos desde 1976, quando Cartola compôs: “De cada morto herdará só o cinismo”. A partir do meu tensionamento, Flusser nos oferece uma simplificação: é muita “batalha espiritual” para pouco “conversar igual gente”.
Voltemos. A relação do desafinado, do finado — propriamente a palavra em questão, ruído, essa coisa que perturba o sono — com a nitidez não é somente poesia. A física e a engenharia de computação que sustentam a geração de imagens procedem da utilização de duas etapas bem básicas que não prejudicam uma à outra.
Para melhorar a pele de alguém em uma fotografia, é preciso primeiro o carinho do embaçar, como um hipermetrope sem óculos. Depois, tem de adicionar ruído, algo parecido com a TV antiga sem sinal. E então se pode ver melhor.
Assim, minha sugestão para o grupo — risos — é uma apreciação do ruído, junto a uma observação atenta dos conteúdos das perturbações. Quando acabar essa pilha, com mais nitidez, sejamos arrogantes em nossas pretenções de dignidade,
Só que eu ia escrever sobre algo completamente diferente. Vou fazer outro post.
Uma suíte jornalística é a continuidade de uma notícia em novas matérias que atualizam as anteriores. Algo como "Duas pessoas ficaram feridas em um acidente"; depois, "Homens que ficaram feridos em acidente fazem cirurgia"; ainda, "Homens que se feriram em acidente recebem alta"; e, ainda, "Empresa responsável por acidente com feridos é multada". Todas essas manchetes fantasiosas têm a ver com um mesmo fato originário.
Não é todo tipo de notícia que merece uma continuidade. Alguns acontecimentos e realizações têm fôlego para uma única aparição. Seja como for, para estar uma ou várias vezes no jornal, a "coisa" tem de ser verdadeiramente uma notícia, o que, basicamente, significa que não é publicidade ou propaganda – mas isso é assunto para outra oportunidade.
Em termos de formato, uma suíte não é nada diferente de uma notícia nova. Até porque só se tem uma continuação quando um novo fato é revelado. Mas é no estilo, pelo que notei, que a marmita das suítes azedou – no sentido de por que perderam o fôlego nos últimos anos.
Vamos tomar por exemplo uma investigação policial. O jornalismo de boa e de má qualidade têm interesse em pautas criminais. Porém, nos dois tipos de qualidade fica um sabor de vício, quem sabe originário do prazer de se "furar" (quando um jornalista é o primeiro em noticiar algo). É uma pressa que mais atrapalha que ajuda: não raro, são apresentadas versões que colaboram com uma história que se quer contar, que pode não ter nada a ver com o que aconteceu de verdade.
No caso de Homem armado ameaça jovem negro em SP, e policial se recusa a agir por estar 'de folga'; veja vídeo, por exemplo. É uma história que rapidamente conquistou a atenção dos jornalistas e do público, porque um vídeo comprova não somente a omissão de uma policial como também a agressão dela contra um jovem. Aqui, não está em discussão se a policial acertou ou errou. Ao mesmo tempo, faltou, pela ausência de suítes, a ampliação do contexto do vídeo de três minutos.
Uma história contada por sua característica intrigante pode render minutos de audiência, e um aumento de visitantes no site. Porém, sem continuidade, é um tiro no pé. Em 2023, o Digital News Report do Reuters Institute identificou que a confiança dos brasileiros no jornalismo é de 43%, uma diminuição de 19 pontos percentuais desde 2015. Estatisticamente, a tendência de queda pode marcar 41% em 2024. Nesse cenário, todos os recursos de inteligência e de integridade são bem-vindos para melhorar esses números.
As suítes são uma oportunidade para garantir ao público que as escolhas de pauta representam, ainda que contramajoritariamente, o compromisso do veículo com uma história contada do começo ao fim, com todas as nuances. Para isso, a linha editorial como um todo, e mais ainda os repórteres e editores, têm de encarar a atividade investigativa com o desprendimento de contar as coisas como elas são, e não como deveriam ser.
Os ares de novidade que uma virada de ano traz parecem com os efeitos de uma renovação de votos. É, digamos, uma oportunidade. A título de analogia, uma cerimonia de bodas por si mesma é impotente para realizar mudanças no casal, no sentido de ampliações de confiança e de reciprocidade, e da consequente felicidade dessas ampliações. Uma cerimônia em si não é nada, mas a concentração da dupla para uma aquisição de consciência melhor é sim. Com o ano novo é muito parecido.
É completamente compreensível desprezar a contagem do tempo pelo calendário comercial, quando o que se intenciona é uma vida livre e frutífera. Uma história pessoal não poderia estar (mas frequentemente está) sujeita à mecânica do trabalho exaustivo: férias, recessos, e feriados. Coisas dessa categoria são muito bem-vindas, é claro, mas correspondem quase sempre à lógica da indústria e do consumo. Daí entra aquele provérbio: “quanto mais você tem, menos você é”.
Nesses contextos, comprar uma roupa nova para o réveillon pode ser uma atitude ambivalente. Em uma mão está a obrigação da compra, da competição que se estabelece com os outros convidados da festa. Na outra está uma legítima disposição para o autocuidado, e para que a parte externa corresponda à novidade do eu mais íntimo.
Para mudar de ano dentro de si é requerido um certo ridículo. Isto é, cruzar a linha do ridículo. Em vez de uma fantasia, vestir-se com o que realmente corresponde ao que se é. Não é fantasiar-se de ser, é ser em essência. Algo interessante é o fato de que aquilo que se deseja ser no futuro somente pode ser verdade se o for agora mesmo. Essa é uma ideia muito básica da filosofia. É também verdade que se algo deixou de ser é porque jamais o foi.
O que chamei de ridículo anteriormente poderia ser também chamado de coragem. Calçar os próprios sapatos, abrir o peito: pensar, falar, agir, e festejar a partir do que se é verdadeiramente, que sempre o foi, e será para sempre. Mas a coragem está menos no aspecto comportamental, que até mesmo um ator canastrão poderia interpretar com toda covardia, e muito mais em uma permissão para que o espírito individual comunique ao mundo o que veio fazer.
Este artigo não é exatamente esperançoso, se lido às pressas. Ele tende a fazer mais sentido quando, pela conversa difícil, conquistamos alguma liberdade para pensar e agir sobre as guerras sem a interferência dos exércitos. Afinal, não há nada que os que promovem a guerra possam fazer pela paz.
Lembro de minhas primeiras aulas sobre Segunda Guerra. Bem, como esquecê-las. À época, achava nem um pouco atraente saber em que anos ela tinha começado e terminado. Considero que as datas faziam pouco sentido para mim devido minha inexperiência de relacionar eventos. Além do mais, minha pouca idade não diferenciava o que cabe em um, dez, ou cem anos.
Em linhas gerais, e para efeito de prova, a Segunda tinha vindo depois da Primeira. E se chamava mundial porque aqueles que a chamaram assim consideravam que o mundo inteiro se resumia a eles. Conhecimento de Ensino Fundamental que vale para a atualidade.
Abre parênteses. Quem passou pelos anos noventa sabe que, em termos de IML, gente atropelada, esfaqueada, cadáveres em putrefação, a televisão nos abasteceu abundantemente com imagens violentas. Na cidade onde eu cresci, uma mulher afogou os dois filhos em um poço, e depois se jogou também. No programa do almoço, assisti aos corpinhos que boiavam. Outro caso foi o da filha que, com a ajuda da namorada, matou a mãe, e a vó. Sem contar o estupro, assassinato e roubo empreendidos contra uma idosa que morava sozinha na Rua XV.
No fim das contas, os que morriam e os que matavam tinham algum parentesco com alguém próximo. Eram, de todo modo, degenerados, não contavam exatamente como gente. Isso sem contar os casos nacionais, Chacina da Candelária, Daniella Perez, Índio Galdino. Fecha parênteses. Este é meu argumento: fica difícil impressionar uma criança brasileira.
Aqueles homicidas comuns, embora perigosíssimos, tinham praticado seus crimes de sorrate. Foram descobertos, e, depois, televisionados, presos, linchados, ou mortos pela polícia. Mas o que nos contavam sobre os campos de extermínio era totalmente diferente, e muitas vezes mais assustador. Tinha algo de errado em multidões assassinadas à luz do dia.
O que sabemos sobre o genocídio de judeus está marcado em preto e branco em nossas memórias, tanto pelas fotos quanto pela brilhante obra cinematográfica A lista de Schindler (1993) dirigida por Steven Spilberg. Graças às novas tecnologias, parte dessas memórias podem nos tocar ainda mais profundamente. A partir da reunião de recursos digitais, eu mesmo colori uma foto de crianças sobreviventes de Auschwitz tirada por Alexander Vorontsov.
É difícil olhar para elas e dizer: “nós desprezamos suas famílias ao máximo, escolhemos quem seria escravizado e quem seria morto e incinerado em nossas quatro câmaras de gás com crematórios”. Porque foi exatamente o que, no papel de humanos, fizemos. Tomar a responsabilidade por aquela desgraça é uma dor para a toda a vida, e não acho que haja qualquer outro jeito de lidar com ela senão carregá-la, com vergonha e arrependimento, até o último dia.
Encarar a inumamidade não é, porém, o mesmo que estagnar para a lamúria. É exatamente o contrário. E, para andarmos o mínimo necessário, temos de nos desfazer de duas ilusões convenientes. A primeira é de que toda responsabilidade pode ser atribuída ao Führer. Sejamos, ainda que isso nos incomode em níveis quase insuportáveis, coerentes. Nenhum homem seria capaz de empreender sem ajuda o Terceiro Reich. Em 1935, o Partido Nazista promulgou as leis de discriminação racial, e o Sr. Bigode não estava sozinho – como se pode comprovar pela filmagem oficial.
A outra ilusão clássica é a de que o “mundo” da Segunda Guerra Mundial não impediu o genocídio simplesmente porque não sabia de nada. Ora. Ao pensar melhor, nem acho mais que se trate de uma ilusão – uma vez que nem toda ilusão é necessariamente um equívoco – , mas de uma mentira deslavada. Com a ilusão, conquistamos certo alívio psíquico, que frequentemente se converte em prazer orgulhoso: “eu jamais teria feito algo assim”. Com a mentira, mantivemos a ideia de que temos um poder que, em verdade, não temos.
Desde a Guerra do Golfo, mais um ridículo dos anos noventa, conflitos militares internacionais passaram a ser também programas de televisão. Não se trata de uma figura de linguagem. Literalmente, as guerras são simultaneamente programas de televisão. É preciso ter pouca inteligência – às vezes nem essa eu alcanço – para compreender que as imagens que consumimos são realizações de uma pessoa. Alguém segura a câmera, escolhe quando apertar REC, quando parar, em que posição se verá o que ele vê, o que entra ou não no quadro. No caso de uma geração por inteligência artificial, alguém terá de escrever o prompt.
Desse jeito, o produto midiático da guerra integra o arsenal geral da guerra. Quem tem mais ou menos recursos para criar e propagar estórias tem, por consequência, mais ou menos poder bélico. É justo perguntar qual é o alcance de destruição de uma arma dessa estirpe. Desde a constituição espontânea de uma esfera pública, e sua progressiva e irreversível decadência, a opinião pública é utilizada para legitimar ou não as ações do Estado. Se convenço o Brasil de que sou “do bem” e que o outro é “do mal”, então os brasileiros tendem a pressionar seus governantes numa direção específica, cujo produto varia de apoio nas redes sociais digitais a proposições no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Contar a melhor estória, porém, não tem nada a ver com contar a história mais precisa. Esse critério de qualidade está restrito a cidadãos que não se comovem facilmente com os apelos das massas – gente que, em cada círculo social, pode ser contada nos dedos de uma mão.
A caminho dos finalmente. Então, se o mundo soubesse do aniquilamento de humanos na Segunda Guerra teria agido para proteger os judeus. Garanto que com uma mente limpa, e três ou quatro vídeos do apocalipse na Palestina, pode-se garantir com cem por cento de acerto que se trata de uma mentira.
Nem mesmo os termos adequados para tratar os crimes de guerra na Palestina têm sido usados adequadamente, em diferentes parlamentos do mundo. A colunista do The Washigton Post Jennifer Rubin escreveu que “quanto mais perto se olha, mais Netanyahu se parece com Trump”, no pior sentido. O artigo afirma que “cerca de oitenta por cento dos israelenses culpam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo de coalizão pela catástrofe do Hamas, de acordo com uma pesquisa do jornal hebraico Maariv”.
No Brasil, a deputada que nasceu para jumenta e jamais chegará a égua Carla Zambelli publicou a imagem de uma águia estadunidense e israelense sobre um rato palestino. Estou persuadido por mim mesmo a não esperar que esse projeto de pessoa seja capaz de compreender o tamanho da própria bestialidade.
Diante de listas nominais de milhares de civis mortos por Israel, a resposta do “mundo” é tão fraca, lânguida, frouxa. Quem sabe seja o momento desta consciência: somos incapazes de impedir a violência pelo mero conhecimento de que a violência existe. Estou avisando você agora: nas próximas horas, crianças palestinas vão ser brutalmente assassinadas, ou mutiladas, e as que sobreviverem terão visto suas famílias e amigos explodirem. Saber disso não muda absolutamente nada.
Há algumas horas, um menino palestino foi buscar uma bola, quando houve um bombardeio bem atrás dele. As costas de seu sobrinho foram feridas. Mas o sobrinho está melhor que Saleh al Qaraan, que teve a cabeça desfeita na explosão.
Acostumado a encontrar posts com animais no Instagram todos os dias, vi um gatinho malhado pular no colo de palestino, no qual repousava o corpo pálido de uma criança morta. O gatinho se aninhou, e fechou os olhos. Sem contar a mãe que, com o bebê morto embrulhado em pano branco, recusava-se a parar de beijá-lo. Ou ainda os incontáveis vídeos de crianças em ataques de pânico dentro de hospitais.
Na dimensão individual, meu trabalho ou o seu contra a guerra e nada parecem bastante. Não podemos contar, pelo menos não agora, que a prudência dos sábios consiga uma hora na agenda dos líderes do mundo. Mas defender os civis palestinos ou não, agora, em toda e qualquer oportunidade, diz sobre o que aprendemos sobre nossa maldade.
Nós poderíamos, com sobras de justificativa, passar o resto de nossas miseráveis vidas lamentando profundamente as guerras. Isso sequer pareceria inadequado. Qualquer ser humano que se incomode com assassinatos tem uma grande chance de ser uma pessoa decente, mesmo que seja ranzinza. Eu proponho ainda outra opção: deixar o papel de resignação para aqueles que se aposentaram do trabalho de criar o mundo.
É ingênuo pensar que a criação é uma tarefa concluída. Há quase tudo a ser feito, especialmente no que diz respeito à consolidação da paz entre os povos. Pode ser que este texto contenha mais ou menos elementos do que o necessário para uma sustentação clara. Então, antecipo-me e garanto que estou aberto a discuti-lo. Vou evitar referências e compartilhar apenas o que está vivo em mim.
O linchamento do inocente Jesus é, sem qualquer dúvida, uma prova de amor. É a partir desse ato fundador da paz que a roda da violência tem girado no vazio há dois milênios. Se havia, em nós, humanos, a necessidade de dilacerar um corpo para a execução de um rito de passagem, esse desejo foi realizado. Se a civilização ocidental está fundamentada nesse ato, e está, então podemos progredir para a consciência decorrente desse ato: “o que fizemos?”.
Tenho pouca ou nenhuma vontade, na verdade, nenhuma, de submeter minha razão às interpretações religiosas dos textos religiosos. Na minha concepção de Deus, sequer está na índole dele promover coisas pequenas ou privilegiar pequenos grupos. Com isso, espero ter explicitado minha conclusão de que, independentemente da vertente religiosa, se o sacrifício humano de Cristo está presente, então não podemos — sob nenhuma emenda — compactuar com o assassinato. É, aqui, uma questão mais sociológica e histórica que mística.
A cisão abraâmica entre judeus e islâmicos é também uma questão sociológica e histórica, embora não somente isso. Pai Abraão, o que foi que o senhor fez? Delegar completamente essa questão civilizatória aos domínios da religião é o mesmo que abdicar do progresso civilizatório como um todo. Cem por cento dos pontos de vista sobre a guerra fundamentados no transcendente individual são inválidos para uma solução de paz.
Para nós, cristãos, fumar o cachimbo deixou nossa boca torta. Foram tantos sermões e músicas com o nome Israel destinado a ocupar um certo tipo de origem de nossa fé que agora, quando um país com o mesmo nome está no centro de uma disputa geopolítica, somos tentados a solucionar a interpretação com base em promessas de nossa religião.
Se a Bíblia tem qualquer validade para católicos e protestantes, em especial, e tem, recomendo uma leitura atenta do livro de Hebreus — meu favorito tanto pela literatura de excelente qualidade quanto pela contribuição à fé. Basicamente, o texto trata do sistema humano de contenção da violência que fracassou miseravelmente e apresenta uma perspectiva de elevação espiritual pela qual todo sistema religioso se desfaz a partir de um sacrifício final. É quando o deus étnico, regional, dos israelenses do Velho Testamento coloca em prática seu plano universal. Com o deus étnico morrem também os métodos ineficazes de solucionar o sofrimento humano, substituídos pelo amor.
Essa questão deve ser observada quando se trata da constituição de uma interpretação brasileira para a guerra no Oriente Médio. A influência de nossas crenças religiosas sobre a esfera pública política ficou ainda mais notável nas duas últimas eleições presidenciais. Se quisermos avançar minimamente na pauta da paz, devemos ser hábeis para redirecionar nossas emoções individuais para compartimentos mais adequados. Nesse passo, aquilo que é da experiência inegável e transcendental deve ser submetido a uma prova de relevância: minha perspectiva acarreta assassinatos? Se sim, tal perspectiva deve ser acolhida, respeitada interiormente, mas desconsiderada para sustentação racional e pública. Não se dialoga com o assassinato. “Matarás?”. “Não matarás”. Assunto encerrado.
A culpa decorrente do assassinato, problema que tentamos solucionar pela submissão ao plano divino da graça e outros recursos civilizacionais, pode ser inexistente dependendo do contexto em que a morte ocorre. Nas guerras, o homicida está integrado a uma formação artificial de massa, ou seja, o exército. Nessa adesão ao exército, o indivíduo renuncia ao seu padrão moral individual, que é substituído pela moral do grupo. Nesse caso, ele poderá matar à vontade, sem que se pergunte por que diabos está fazendo aquilo. As massas são formações perigosas, e suas vantagens, como o folclore, são as mesmas que nada na comparação com seus danos.
Estamos impregnados de violência há pelo menos trinta e nove anos, desde que cheguei ao mundo. Para não perder a sensibilidade, comecei a contabilizar a morte pelo sistema métrico internacional. Em minhas contas, tivemos que enterrar cerca de noventa e oito toneladas de carne humana fornecida pelo Hamas ao mundo. Competitivo, Israel foi ainda mais generoso em seu banquete, servindo-nos 450 toneladas de cadáveres — muitos ainda insepultos. Soluções completas para o futuro da humanidade, que estavam nessas pessoas, foram reduzidas à depressão alastrante, quando o cérebro apaga a luz.
As pedras do Passeio Público sabem que a origem nacionalista e religiosa da guerra rapidamente se transformou em um grande negócio. Agora, valem as regras do mercado. Jamais se tratou de uma Nações Unidas enfraquecida. É a habilidade de negociação dos povos que está enfraquecida, de modo que a diplomacia nos serve de índice. O patético veto dos Estados Unidos à Resolução do Brasil que previa ajuda humanitária, seguido pelo patético oferecimento de uma nova Resolução pelos mesmos Estados Unidos, levou ao veto da Rússia e da China. O embaixador israelense pediu a renúncia do secretário-geral da organização. Temos Estados Unidos e Israel conversando apenas entre eles, enquanto o resto do mundo espera atônito.
A constituição básica de uma esfera pública se dá por pessoas privadas que discutem com base em razões. A rebeldia não é uma razão. A submissão não é uma razão. A intuição não é uma razão. O impulso não é uma razão. É cedo para estimar uma data, mas não para afirmar que, diante de uma derrota tão humilhante, a diplomacia mundial terá que evoluir suas práticas comunicacionais e deliberativas. Teremos que elevar nomes acima de nós que traduzam nossa confiança na resolução de problemas — líderes inteligentes, éticos e, sobretudo, criativos em suas proposições.
Israel tem o direito de se defender? Não, tem o dever. O Hamas é um docinho de coco? Não parece diferente de uma milícia carioca, exceto pelo planejamento, pelas armas melhores e por uma mágoa ancestral. São instituições equivalentes? No que diz respeito à constituição formal, não. Mas no caráter decrépito de assassinar, seus resultados não são diferentes, exceto pela quantidade jorrada de sangue.
A história registra que os judeus foram objeto de ódio irresponsável perpetrado por inúmeras instituições. Esse ódio se manifestou de diferentes maneiras. Embora tenha atingido seu ápice no Holocausto, desenvolveu-se de maneiras mais sofisticadas — por que não dizer civilizadas — sem perder sua característica de ódio. A criação de um estado para esse povo, longe de ser um mero beneplácito da comunidade internacional, não esconde o verdadeiro propósito dos países de manterem os judeus afastados de seus territórios.
Sob a perspectiva da filosofia contemporânea, o que se compreende como luta por reconhecimento termina, de maneira lamentável, no judeu. Os extermínios dirigidos a pretos, estrangeiros desinibidos e toda sorte de gente não submetida, simbolicamente, se destinariam ao judeu. Essa interpretação é compartilhada por autores que chegaram a ela de maneira independente. O judeu da Bíblia, do Holocausto e da comédia, porém, não é a autoridade israelense contemporânea. Tal autoridade não é uma unanimidade nem mesmo entre os próprios israelenses, quanto mais na comunidade internacional. Além disso, o israelense nascido no Israel de hoje sequer é necessariamente judeu.
Se temos a liberdade de questionar o conteúdo histórico do Pentateuco e de outros compêndios judeus, e temos, podemos chegar rapidamente à constatação de que suas abordagens favorecem de forma desproporcional um povo messiânico que se autodenomina escolhido por Deus para governar sobre seus irmãos. Em linhas gerais e específicas, um judeu fundamentalista, à semelhança do fundamentalista islâmico, acredita ter licença para fazer o que quiser, pois Deus não somente o autoriza, como o ordena. Toda a obra salvífica que se consolida, para os cristãos, na morte de Cristo não tem nenhuma validade para esses fundamentalistas, então, para eles, a roda da violência gira em seu umbigo especial. Se não devemos constranger a crença religiosa do outro, e não devemos, mas essa crença transgride o código civilizatório, então poderíamos contar com a adesão do outro à discussão do código civilizatório, pelo menos.
O governo atual de Israel tem a aparência de um estado: tem um primeiro-ministro, eleições, mas suas ações demonstram que não se trata de um estado democrático suficientemente desenvolvido em relação às suas interações com o mundo. Isso se manifesta em uma recusa ao diálogo. É necessário observar os aspectos emocionais da relação entre Israel e o mundo. Ainda que as motivações intrinsecamente ligadas ao deus étnico e à prática de conquista de territórios ordenada por tal deus tenham sido superadas, restam os vestígios emocionais dessas experiências. É compreensível, embora lamentável, que o Israel atual esteja conectado à beligerância de seu passado histórico.
Quanto à Palestina, ela é o novo judeu — considerando a filosofia do reconhecimento mencionada anteriormente. Levada às últimas consequências, a ideia de que o abusado tem um enorme potencial para se tornar um abusador poderia se aplicar a um grupo, ou mesmo a um comportamento de massa. Daqui a dez anos, quando eu lembrar desta guerra, a menos que algo ainda pior me surpreenda, em minha mente haverá a imagem de uma mãe palestina que, aos gritos, reclamava que seus filhos estavam com fome quando foram assassinados. O povo palestino é subalternizado de muitas maneiras e por muitos interesses. As informações sobre esse povo, apresentadas neste artigo, estão disponíveis como anexo no canal do YouTube Outras Terras Filmes (http://outrasterras.com.br).
Um tempo atrás, procurei pela Palestina no Google Maps, e a encontrei no meio do oceano. À época, concluí que o mundo tinha terminado, pelo menos um projeto de mundo, ao encontrar um povo que tanto me ama e é amado por mim afogado no ódio em que alguém em algum lugar o afogou.
Hoje, depois do assassinato de centenas (o número é impreciso, mas impressionante) de palestinos que estavam em um hospital, eu me dei conta de que o mundo terminou para eles, que o apocalipse, o fim dos tempos, chegou para aqueles humanos. Viram a vergonha, a fome, e morreram.
Imagine comigo. De repente, uma autoridade estrangeira ordena que você saia da sua casa. Ao fugir sem carregar nada, sua jornada é de sede e fome. Depois, veem-se escombros, poeira, amigos e família estirados no chão, uns decepados, outros sem sepultura. Então você também morre.
Se isso, que é verdadeiro, não torna também verdadeiro que chegamos ao fim do mundo, então o que viria a ser o fim do mundo? Desastres naturais, por piores que sejam, pelo menos são honrosos. Ninguém poderá culpar o vulcão. Genocídio com apoio de grupos religiosos é fim do mundo.
A postura da comunidade internacional é insuficiente. A humanidade está demasiadamente paralisada na reação às guerras, os poderosos não são verdadeiramente poderosos. Não passam de homens do mercado! E de um mercado de almas, descrito lá no Apocalipse de João.