Cartas pessoais
19/12/2022

Sgarbe para 2022; Carta seis

Reflexões pessoais revelam pessimismo sereno, coragem diante do desejo e busca por autoconhecimento em ano monotônico.

Vinícius Sgarbe
5 min read

Em 2022, tive a experiência da mais deliciosa monotonia. É como se. Justamente. O “como se” da literatura. É como se eu tivesse aplicado filtros de cor, de redução de ruído, tivesse baixado a luz, diminuído o contraste. Foi um ano deliciosamente normal, o que, para mim, significa que aprendi muitas habilidades novas, e poderia dizer: se não nos vemos há muito tempo, é possível que eu tenha mudado muito.

Eu me ocupei prioritariamente da política, para a qual dedico duas dissertações (uma pior que a outra). Também assentei em mim o que chamo de “pessimismo sereno”. Acho graça no tanto que, humanos que somos, somos capazes de errar por mera burrice (por ignorância menos, mais por burrice). Nem mesmo um gato falando pode ser mais engraçado.

Discordei de praticamente tudo que li no Instagram. Levados às últimas consequências, aqueles conselhos podem destruir anos de processo civilizador. O mundo, pelo menos no meu ver, precisa de mais gente conversando, mais gente se atrevendo, mais gente dizendo que sim ou não sem medo. É bem o contrário da vida narcísica.

Não existe cultura ou civilização em vidas que vivem para si mesmas. Estão ainda na onipotência do pensamento animal. Às vezes, são nossos colegas de trabalho, às vezes um amor, um amor da família, que pena para todos nós. A simplificação dos memes quase sempre me remete ao riso da forca.

No fim das contas, o que vale é uma certa coragem diante do próprio desejo. Não conheço uma única alma que tenha obtido sucesso sem confessar a si mesma que pode pouco e sabe menos ainda. Tem uma potência enorme nessa conversão à gente mesmo. “Mas não tem revolta não, só quero que você se encontre”. Conheci o homem que ajudou Peninha a escrever essa letra. Ficamos sentados em um banco de madeira, lembrando que a vida é também amor, se é que não é só amor.

Diante de Deus e seus anjos, diante de Satanás e seus demônios, diante da Igreja e da Grande Nuvem de Testemunhas, diante da mais pérfida viela de um bairro tomado pelo tráfico, diante das prostitutas da Visconde de Guarapuava, diante dos sacerdotes de todas as religiões, diante do mundo sem fé e da Santa Sé, diante de Nossa Senhora e São José, e de todos os apóstolos vivos ou mortos, diante dos carros da rápida, das pedras do Passeio Público, diante dos bolsonaristas em frente ao quartéis, diante dos bolsonaristas com sinal trocado nas universidades, diante da foto de Patryck impressa em PVC, diante da pior coleção de livros que uma casa pode ter — a da Tag —, diante de mim, confesso: eu não posso mudar o mundo no grito (embora eu seja excelente de grito).

Eu sei no fundo e na superfície do meu espírito que podemos ser muito felizes, antes de morrer. Que a vida humana pode valer a pena quando damos o primeiro beijo, ou quando fazemos planos eternos. A mensagem é:

“Sabe o que acontece quando a ganância toma o controle: quanto mais você tem, menos você é. A sabedoria sai à rua e grita, e no meio da cidade, faz seu discurso”.

As infinitas ajudas que recebo não têm parado em mim, elas, abundantes que são, têm corrido rios glamurosos e fios de vida em valetas podres. A vida que resiste a água de bateria, a viagens espaciais no vácuo, e a profundezas salgadas e sem oxigênio dos oceanos também dá as caras nas sessões de análise. Quanto mais encontro recursos para destruir as ideias dos outros, mais me aposso da misericórdia que é recorrentemente oferecida a mim.

Quem eventualmente pensa que faço parte de uma grande trama está redondamente enganado. Quem eventualmente pensa em me envolver em uma grande trata está perdendo tempo. Minha vida é realmente indiferente para coisas humanas que não sejam ligadas à grandeza de nossa divindade. Se eu morresse agora, e o julgamento final fosse uma única pergunta, qual fosse “você foi feliz?”, minha aprovação viria da resposta “veja bem, apesar do Senhor não ter sido exatamente claro a maior parte do tempo, eu fiz tudo que sabia”. E pronto. Vocês poderiam imprimir fotos minhas junto à “Novena de São Sgarbe”. Do primeiro ao último dia de minha Santa Novena, vocês terão de rezar:

“Eu não sou o Bono Vox, nem a Madonna, sou uma pessoa essencial para as pessoas em volta de mim. Para eu alcançar [coloque aqui sua intenção], preciso acordar cedo e dormir cedo, ter uma agenda organizada, e me desviar ao máximo de jogos psicológicos. Pela intercessão de São Sgarbe, que Deus deixe de ser um pai autoritário e vingativo, e passe a ser alguém que faço feliz. Amém”.

Pouca coisa pode resistir a uma certa insistência. Se a porta não abre de jeito nenhum, nem com reza, nem com feitiço, nem com todos os efeitos lúdicos e especiais, ali não está o nosso caminho. “A benção de Deus enriquece e não traz dores”. Se aquele senhor mudou de ideia em relação a manter a própria palavra, é uma questão dele rever os próprios princípios.

Conheço cada vez menos de Deus, mas isto eu sei: ele dá preferência a quem se entrega. É melhor dizer “eu não vou” e ir, do que ser o primeiro da fila e não aparecer para o trabalho. Esses dias, disse a ele, “e o Senhor é o mais hipócrita de todos”. Como de costume, eu estava errado. Mas acho que ele entendeu o recado.

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Leia insights sobre a interação de humanos com modelos de linguagem de IA, e sobre os ODS no Brasil. Lab Educação 2050 Ltda, que mantém este site, é signatária do Pacto Global das Nações Unidas.

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“AI is not replacing lawyers—it's empowering them. By automating the mundane, enhancing the complex, and democratizing access, AI is paving the way for a legal system that’s faster, fairer, and more future-ready.”

Micheal Sterling
CEO - Founder @ Echo

Improving Access to Justice

The integration of AI into the legal industry is still in its early stages, but the potential is immense. As AI technology continues to evolve. We can expect even more advanced applications, such as:

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Francisco foi um excelente pai para a Igreja. Chamo-o assim, pelo primeiro e único nome, porque deixou em seu testamento que deveria ser a inscrição em seu túmulo: “Franciscus”.

Escrito na metade de 2022, o texto oferece o “sofrimento que esteve presente na última parte” da vida do Papa ao “Senhor, pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos”. Infere‑se que, desde então, a despedida esteve em suas preocupações.

É coerente sentir estranheza diante de um líder que telefonava para o pároco de Gaza, e que não se esquivou de pedir o desarmamento e o fim da guerra. Naquilo que chamava de “globalização da indiferença”, os homens passaram a consumir os horrores da natureza violenta sem tomar qualquer providência.

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Falho repetidamente. Agora mesmo, falhei no propósito de ir para a cama às 21h30. Por alguma razão parecida com “puta que pariu! Eu não durmo mais que quatro horas mesmo”, entreguei-me à deriva da escuridão.

Temo que uma autoridade severa chore para me disciplinar: “não é hora de ir ao banheiro”. Atividades em geral. Os chats da madrugada chegaram ao fim, cobertos de areia, desintegrados por um choque, incinerados. Dá aquele dózinho. Toda aquela literatura caótica que me trouxe tantos amigos enlouqueceu, e fala sozinha nos posts do Mark.

O livro que Maku me enviou é bem escrito, claro, mas é lido em supercâmera lenta. A personagem começa a se revelar a partir da vontade de morrer. Não se encontra gente honesta assim com facilidade. Como torradas com cream cheese e geleia de frutas vermelhas. Foi a caixa, o pote. Troquei por nata. Nata não tem erro.

Esse fractal, então: a morte e a vida se explicando pouco, falando rápido e alto, tal qual turistas brasileiras de batom vermelho e bolsas tiracolo encantando o mundo com uma malcriação sorridente. Minha análise, a seguir, é sofisticada.

Há desafinações da vida que são, é preciso repetir, forças da natureza. Desafinações, neste texto, são metaforicamente Meryl Streep interpretando Florence Foster Jenkins no cinema, ou qualquer instrumento que deveria vibrar um sublime “ooowooowooow”, mas acaba por materializar a Vó Jephinha se aventurando fora do tom, sem melodia.

Gosto da água porque ela não perde tempo com pedra ou muro; desvia, aceita um bom túnel, mas, se precisar, arrebenta com tudo. A água toma para si terrenos que nem vocação para piscina tinham, repousando ali uma inundação calamitosa.

As regiões do mundo que estão para desaparecer precisam de suporte intelectual para resolver questões de propriedade, repatriação e o retorno de burocracias previsíveis. Não se pode erguer uma ilha na parte de cima de um sobrado; nem mesmo catedrais japonesas de drenagem fazem diferença no oceano. Perigos assim equiparam nossa inteligência a nada. A natureza é uma das três fontes notáveis de desprazer na psicanálise freudiana.

“E de todo esse instrumento desafinado eu nunca fui aprendiz.” Há esse verso numa letra de Gabrielle Seraine. E na música dela também, quando se canta “[desa]finado”, quando se canta exatamente “finado”, a harmonia se despedaça por um instante, como uma criança filha da puta assoprando uma flauta de plástico. É o vale antes do topo, o “dark before the dawn”.

Espírito de Flusser

Quando o indivíduo desafinado — o “médium” (de mídia, não de falar com mortos) — emite ruídos, a comunicação fica mais nítida. Vamos usar a palavra “comunicação” como um sinônimo futuro para “espírito”, uma belíssima concepção de Flusser.

Nas religiões que lidam com “espíritos”, note-se a similaridade na condução das intenções: portas são abertas e fechadas, pessoas são estimuladas a movimentar a psique, e até mesmo pedidos banais que não passam de burocracias previsíveis. Pede-se, promete-se, agradece-se, expulsa-se, infunde-se — tudo pela conjuração de palavras humanas e inteligíveis.

Aceitar a Jesus, renunciar à maçonaria, declarar a vitória, tomar posse da bênção, fazer macumba para a Dona Ida morrer (criança é muito inventiva) — tudo isso requer falar. Do feitiço do Pai Grego à corrente de oração Sete Batidas na Porta da Graça do pessoal da Janine. Comunicação. Fala. Escuta.

Em alguns cultos evangélicos, diante de uma comunicação insatisfatória, é provável que alguém passe a fazer o papel de endemoniado em favor do grupo. A missa católica tem tantos recursos de comunicação que uma parte do sermão acaba guardada.

Os “espíritos” são assunto antigo, primitivo. Foi o jeito de manter os mortos por perto. Depois, esses mortos viraram demônios. A história registra em termos antropológicos; tenho aqui um original do Frazer que ganhei de Luca. Meu ponto é: se os espíritos “nascem” de mortos domésticos, é natural que, antes de se comprometerem com eventos fora de casa — falando em reuniões espíritas, fazendo vento — estejam disponíveis no inventário da família.

Poderosos porém patetas

Há poder na psicanálise, na Análise Transacional, nos Narcóticos Anônimos. Mas esses empreendimentos precisam de muito mais tempo, especialização e oportunidades para erros do que se pode alcançar em família, quando uma família está disponível. Família, claro, entenda-se amplamente.

Uma família que tenha compreendido a perenidade do amor, que tenha deixado as lutas por reconhecimento para práticas comunitárias, tem mais chances de sucesso na invocação de espíritos poderosos.

O poderoso espírito do criador, para aqueles que creem assim, tem de fazer alguma diferença. Deus está morto? Não se engane. Escrevo sobre comunicação. Sobre conjurar, invocar, boa comunicação. Na última linha do ruído, “tomar posse da bênção”, como bem observado por Nina.

Em português, “espíritos” são comunicação pelo menos desde 1976, quando Cartola compôs: “De cada morto herdará só o cinismo”. A partir do meu tensionamento, Flusser nos oferece uma simplificação: é muita “batalha espiritual” para pouco “conversar igual gente”.

Voltemos. A relação do desafinado, do finado — propriamente a palavra em questão, ruído, essa coisa que perturba o sono — com a nitidez não é somente poesia. A física e a engenharia de computação que sustentam a geração de imagens procedem da utilização de duas etapas bem básicas que não prejudicam uma à outra.

Para melhorar a pele de alguém em uma fotografia, é preciso primeiro o carinho do embaçar, como um hipermetrope sem óculos. Depois, tem de adicionar ruído, algo parecido com a TV antiga sem sinal. E então se pode ver melhor.

Assim, minha sugestão para o grupo — risos — é uma apreciação do ruído, junto a uma observação atenta dos conteúdos das perturbações. Quando acabar essa pilha, com mais nitidez, sejamos arrogantes em nossas pretenções de dignidade,

Só que eu ia escrever sobre algo completamente diferente. Vou fazer outro post.