A empresa Lab Digital 2050 é lançada na sede do ISE Business School, em São Paulo. Em uma reunião discreta, depois de um café da manhã com donuts de frutas vermelhas, são apresentados oito laboratórios de mídia para a comunidade intelectual paulistana.
O presidente do Conselho do ISE, professor Dr. Carlos Alberto Di Franco, passou para nos cumprimentar pela amizade e pela data. O laboratório de análise de dados utiliza, a título de demonstração de lançamento, um corpus com os comentários deixados no canal de YouTube do professor nos últimos seis meses. É realizada análise de sentimentos com uso de inteligência artificial da Microsoft.
Na foto de destaque, Ágata Soares, professor Dr. Carlos Alberto Di Franco, e eu.
Dra. Ana Brambilla e Raphael Müller. Foto: Vinícius Sgarbe.
Os professores do ISE e mentores do Lab Dra. Ana Brambilla e Raphael Müller fazem apresentações, ocupam os papéis de patrocinadores organizacionais. Müeller acaba de voltar de Barcelona, em atividade do IESE Business School da Universidade de Navarra. Ele defende que uma vitória na vida se dá quando os recursos do indivíduo são utilizados. “Davi, quando lutou contra Golias, por exemplo, não usou as armas dos outros. Ele nem saberia o que fazer com elas”, argumenta.
Dra. Ana mergulha no sentido profundo que é a gênese e o desenvolvimento de um negócio, do ponto de vista da filosofia. “A realização do potencial de um empreendedor é que se torne empresário”, instrui. Para ela, “é um orgulho ver um projeto gestado em nossa escola ganhando vida e chegando ao mercado com tanta solidez. O entusiasmo dos gestores, Vinícius e Ágata, é claramente o combustível maior de uma proposta que surge com o objetivo nobre e raro de aperfeiçoar a comunicação humana em suas múltiplas perspectivas”.
A sócia-fundadora do Lab, a linguista Ágata Soares, explica assim: “fazemos o lançamento da linha de produtos de 2023. A apresentação marca, oficialmente, o início da empresa. Convidamos pessoas que fazem parte de nosso desenvolvimento, muitos deles são porta-vozes de marcas que gostamos de trabalhar, além de representantes de delegações internacionais, e a mãe do Sgarbe”.
O empresário curitibano Oberdan Pallu, a psicóloga Janine Sgarbe, e a diretora de relações institucionais do Master: Negócios de Mídia, Dra. Glaucia Noguera. Foto: Vinícius Sgarbe.
A diretora de relações institucionais do Master: Negócios de Mídia, Dra. Glaucia Noguera, escreve assim: "o [curso] Empreender no Jornalismo foi criado em 2020, para aprimorar os conhecimentos dos profissionais de mídia que já empreendiam ou tinham o desejo de montar seu próprio negócio. O Sgarbe se encaixava nas duas categorias: há alguns anos, vinha tocando projetos próprios, mas cultivava, entusiasmado, outras tantas boas ideias que permaneciam no papel. O Lab Digital 2050 era uma delas, e foi sendo modelada ao longo das aulas e das sessões de mentoria. Sediar o lançamento oficial em São Paulo é, para Master: Negócios de Mídia, um motivo de grande alegria e satisfação. Empreender envolve grandes riscos e, nesta manhã de festa, Sgarbe e Ágata provaram que, com estratégia e paixão, os sonhos vão se fazendo realidade".
Para mim, Sgarbe, a empresa nasce de uma profunda consciência de que o trabalho deve ter uma serventia ampla, e de que os “verdadeiros valores da vida” que deixaram de ser apreciados, como Freud nos convida a observar, tendem a ser retomamos pela singeleza.
Sou veterano da primeira turma do curso Empreender no Jornalismo do ISE. Uma espécie de “escola dominical” frente ao prestigiadíssimo Master de mídias. Que seja público e notório: poucas vezes um trabalho profissional é tão bem cuidado como é no ISE. Algo assim vivi por quando me tornei sócio da jornalista Cassiana Pizaia em nossa produtora Outras Terras Filmes.
Uma suíte jornalística é a continuidade de uma notícia em novas matérias que atualizam as anteriores. Algo como "Duas pessoas ficaram feridas em um acidente"; depois, "Homens que ficaram feridos em acidente fazem cirurgia"; ainda, "Homens que se feriram em acidente recebem alta"; e, ainda, "Empresa responsável por acidente com feridos é multada". Todas essas manchetes fantasiosas têm a ver com um mesmo fato originário.
Não é todo tipo de notícia que merece uma continuidade. Alguns acontecimentos e realizações têm fôlego para uma única aparição. Seja como for, para estar uma ou várias vezes no jornal, a "coisa" tem de ser verdadeiramente uma notícia, o que, basicamente, significa que não é publicidade ou propaganda – mas isso é assunto para outra oportunidade.
Em termos de formato, uma suíte não é nada diferente de uma notícia nova. Até porque só se tem uma continuação quando um novo fato é revelado. Mas é no estilo, pelo que notei, que a marmita das suítes azedou – no sentido de por que perderam o fôlego nos últimos anos.
Vamos tomar por exemplo uma investigação policial. O jornalismo de boa e de má qualidade têm interesse em pautas criminais. Porém, nos dois tipos de qualidade fica um sabor de vício, quem sabe originário do prazer de se "furar" (quando um jornalista é o primeiro em noticiar algo). É uma pressa que mais atrapalha que ajuda: não raro, são apresentadas versões que colaboram com uma história que se quer contar, que pode não ter nada a ver com o que aconteceu de verdade.
No caso de Homem armado ameaça jovem negro em SP, e policial se recusa a agir por estar 'de folga'; veja vídeo, por exemplo. É uma história que rapidamente conquistou a atenção dos jornalistas e do público, porque um vídeo comprova não somente a omissão de uma policial como também a agressão dela contra um jovem. Aqui, não está em discussão se a policial acertou ou errou. Ao mesmo tempo, faltou, pela ausência de suítes, a ampliação do contexto do vídeo de três minutos.
Uma história contada por sua característica intrigante pode render minutos de audiência, e um aumento de visitantes no site. Porém, sem continuidade, é um tiro no pé. Em 2023, o Digital News Report do Reuters Institute identificou que a confiança dos brasileiros no jornalismo é de 43%, uma diminuição de 19 pontos percentuais desde 2015. Estatisticamente, a tendência de queda pode marcar 41% em 2024. Nesse cenário, todos os recursos de inteligência e de integridade são bem-vindos para melhorar esses números.
As suítes são uma oportunidade para garantir ao público que as escolhas de pauta representam, ainda que contramajoritariamente, o compromisso do veículo com uma história contada do começo ao fim, com todas as nuances. Para isso, a linha editorial como um todo, e mais ainda os repórteres e editores, têm de encarar a atividade investigativa com o desprendimento de contar as coisas como elas são, e não como deveriam ser.
Os ares de novidade que uma virada de ano traz parecem com os efeitos de uma renovação de votos. É, digamos, uma oportunidade. A título de analogia, uma cerimonia de bodas por si mesma é impotente para realizar mudanças no casal, no sentido de ampliações de confiança e de reciprocidade, e da consequente felicidade dessas ampliações. Uma cerimônia em si não é nada, mas a concentração da dupla para uma aquisição de consciência melhor é sim. Com o ano novo é muito parecido.
É completamente compreensível desprezar a contagem do tempo pelo calendário comercial, quando o que se intenciona é uma vida livre e frutífera. Uma história pessoal não poderia estar (mas frequentemente está) sujeita à mecânica do trabalho exaustivo: férias, recessos, e feriados. Coisas dessa categoria são muito bem-vindas, é claro, mas correspondem quase sempre à lógica da indústria e do consumo. Daí entra aquele provérbio: “quanto mais você tem, menos você é”.
Nesses contextos, comprar uma roupa nova para o réveillon pode ser uma atitude ambivalente. Em uma mão está a obrigação da compra, da competição que se estabelece com os outros convidados da festa. Na outra está uma legítima disposição para o autocuidado, e para que a parte externa corresponda à novidade do eu mais íntimo.
Para mudar de ano dentro de si é requerido um certo ridículo. Isto é, cruzar a linha do ridículo. Em vez de uma fantasia, vestir-se com o que realmente corresponde ao que se é. Não é fantasiar-se de ser, é ser em essência. Algo interessante é o fato de que aquilo que se deseja ser no futuro somente pode ser verdade se o for agora mesmo. Essa é uma ideia muito básica da filosofia. É também verdade que se algo deixou de ser é porque jamais o foi.
O que chamei de ridículo anteriormente poderia ser também chamado de coragem. Calçar os próprios sapatos, abrir o peito: pensar, falar, agir, e festejar a partir do que se é verdadeiramente, que sempre o foi, e será para sempre. Mas a coragem está menos no aspecto comportamental, que até mesmo um ator canastrão poderia interpretar com toda covardia, e muito mais em uma permissão para que o espírito individual comunique ao mundo o que veio fazer.
Este artigo não é exatamente esperançoso, se lido às pressas. Ele tende a fazer mais sentido quando, pela conversa difícil, conquistamos alguma liberdade para pensar e agir sobre as guerras sem a interferência dos exércitos. Afinal, não há nada que os que promovem a guerra possam fazer pela paz.
Lembro de minhas primeiras aulas sobre Segunda Guerra. Bem, como esquecê-las. À época, achava nem um pouco atraente saber em que anos ela tinha começado e terminado. Considero que as datas faziam pouco sentido para mim devido minha inexperiência de relacionar eventos. Além do mais, minha pouca idade não diferenciava o que cabe em um, dez, ou cem anos.
Em linhas gerais, e para efeito de prova, a Segunda tinha vindo depois da Primeira. E se chamava mundial porque aqueles que a chamaram assim consideravam que o mundo inteiro se resumia a eles. Conhecimento de Ensino Fundamental que vale para a atualidade.
Abre parênteses. Quem passou pelos anos noventa sabe que, em termos de IML, gente atropelada, esfaqueada, cadáveres em putrefação, a televisão nos abasteceu abundantemente com imagens violentas. Na cidade onde eu cresci, uma mulher afogou os dois filhos em um poço, e depois se jogou também. No programa do almoço, assisti aos corpinhos que boiavam. Outro caso foi o da filha que, com a ajuda da namorada, matou a mãe, e a vó. Sem contar o estupro, assassinato e roubo empreendidos contra uma idosa que morava sozinha na Rua XV.
No fim das contas, os que morriam e os que matavam tinham algum parentesco com alguém próximo. Eram, de todo modo, degenerados, não contavam exatamente como gente. Isso sem contar os casos nacionais, Chacina da Candelária, Daniella Perez, Índio Galdino. Fecha parênteses. Este é meu argumento: fica difícil impressionar uma criança brasileira.
Aqueles homicidas comuns, embora perigosíssimos, tinham praticado seus crimes de sorrate. Foram descobertos, e, depois, televisionados, presos, linchados, ou mortos pela polícia. Mas o que nos contavam sobre os campos de extermínio era totalmente diferente, e muitas vezes mais assustador. Tinha algo de errado em multidões assassinadas à luz do dia.
O que sabemos sobre o genocídio de judeus está marcado em preto e branco em nossas memórias, tanto pelas fotos quanto pela brilhante obra cinematográfica A lista de Schindler (1993) dirigida por Steven Spilberg. Graças às novas tecnologias, parte dessas memórias podem nos tocar ainda mais profundamente. A partir da reunião de recursos digitais, eu mesmo colori uma foto de crianças sobreviventes de Auschwitz tirada por Alexander Vorontsov.
É difícil olhar para elas e dizer: “nós desprezamos suas famílias ao máximo, escolhemos quem seria escravizado e quem seria morto e incinerado em nossas quatro câmaras de gás com crematórios”. Porque foi exatamente o que, no papel de humanos, fizemos. Tomar a responsabilidade por aquela desgraça é uma dor para a toda a vida, e não acho que haja qualquer outro jeito de lidar com ela senão carregá-la, com vergonha e arrependimento, até o último dia.
Encarar a inumamidade não é, porém, o mesmo que estagnar para a lamúria. É exatamente o contrário. E, para andarmos o mínimo necessário, temos de nos desfazer de duas ilusões convenientes. A primeira é de que toda responsabilidade pode ser atribuída ao Führer. Sejamos, ainda que isso nos incomode em níveis quase insuportáveis, coerentes. Nenhum homem seria capaz de empreender sem ajuda o Terceiro Reich. Em 1935, o Partido Nazista promulgou as leis de discriminação racial, e o Sr. Bigode não estava sozinho – como se pode comprovar pela filmagem oficial.
A outra ilusão clássica é a de que o “mundo” da Segunda Guerra Mundial não impediu o genocídio simplesmente porque não sabia de nada. Ora. Ao pensar melhor, nem acho mais que se trate de uma ilusão – uma vez que nem toda ilusão é necessariamente um equívoco – , mas de uma mentira deslavada. Com a ilusão, conquistamos certo alívio psíquico, que frequentemente se converte em prazer orgulhoso: “eu jamais teria feito algo assim”. Com a mentira, mantivemos a ideia de que temos um poder que, em verdade, não temos.
Desde a Guerra do Golfo, mais um ridículo dos anos noventa, conflitos militares internacionais passaram a ser também programas de televisão. Não se trata de uma figura de linguagem. Literalmente, as guerras são simultaneamente programas de televisão. É preciso ter pouca inteligência – às vezes nem essa eu alcanço – para compreender que as imagens que consumimos são realizações de uma pessoa. Alguém segura a câmera, escolhe quando apertar REC, quando parar, em que posição se verá o que ele vê, o que entra ou não no quadro. No caso de uma geração por inteligência artificial, alguém terá de escrever o prompt.
Desse jeito, o produto midiático da guerra integra o arsenal geral da guerra. Quem tem mais ou menos recursos para criar e propagar estórias tem, por consequência, mais ou menos poder bélico. É justo perguntar qual é o alcance de destruição de uma arma dessa estirpe. Desde a constituição espontânea de uma esfera pública, e sua progressiva e irreversível decadência, a opinião pública é utilizada para legitimar ou não as ações do Estado. Se convenço o Brasil de que sou “do bem” e que o outro é “do mal”, então os brasileiros tendem a pressionar seus governantes numa direção específica, cujo produto varia de apoio nas redes sociais digitais a proposições no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Contar a melhor estória, porém, não tem nada a ver com contar a história mais precisa. Esse critério de qualidade está restrito a cidadãos que não se comovem facilmente com os apelos das massas – gente que, em cada círculo social, pode ser contada nos dedos de uma mão.
A caminho dos finalmente. Então, se o mundo soubesse do aniquilamento de humanos na Segunda Guerra teria agido para proteger os judeus. Garanto que com uma mente limpa, e três ou quatro vídeos do apocalipse na Palestina, pode-se garantir com cem por cento de acerto que se trata de uma mentira.
Nem mesmo os termos adequados para tratar os crimes de guerra na Palestina têm sido usados adequadamente, em diferentes parlamentos do mundo. A colunista do The Washigton Post Jennifer Rubin escreveu que “quanto mais perto se olha, mais Netanyahu se parece com Trump”, no pior sentido. O artigo afirma que “cerca de oitenta por cento dos israelenses culpam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo de coalizão pela catástrofe do Hamas, de acordo com uma pesquisa do jornal hebraico Maariv”.
No Brasil, a deputada que nasceu para jumenta e jamais chegará a égua Carla Zambelli publicou a imagem de uma águia estadunidense e israelense sobre um rato palestino. Estou persuadido por mim mesmo a não esperar que esse projeto de pessoa seja capaz de compreender o tamanho da própria bestialidade.
Diante de listas nominais de milhares de civis mortos por Israel, a resposta do “mundo” é tão fraca, lânguida, frouxa. Quem sabe seja o momento desta consciência: somos incapazes de impedir a violência pelo mero conhecimento de que a violência existe. Estou avisando você agora: nas próximas horas, crianças palestinas vão ser brutalmente assassinadas, ou mutiladas, e as que sobreviverem terão visto suas famílias e amigos explodirem. Saber disso não muda absolutamente nada.
Há algumas horas, um menino palestino foi buscar uma bola, quando houve um bombardeio bem atrás dele. As costas de seu sobrinho foram feridas. Mas o sobrinho está melhor que Saleh al Qaraan, que teve a cabeça desfeita na explosão.
Acostumado a encontrar posts com animais no Instagram todos os dias, vi um gatinho malhado pular no colo de palestino, no qual repousava o corpo pálido de uma criança morta. O gatinho se aninhou, e fechou os olhos. Sem contar a mãe que, com o bebê morto embrulhado em pano branco, recusava-se a parar de beijá-lo. Ou ainda os incontáveis vídeos de crianças em ataques de pânico dentro de hospitais.
Na dimensão individual, meu trabalho ou o seu contra a guerra e nada parecem bastante. Não podemos contar, pelo menos não agora, que a prudência dos sábios consiga uma hora na agenda dos líderes do mundo. Mas defender os civis palestinos ou não, agora, em toda e qualquer oportunidade, diz sobre o que aprendemos sobre nossa maldade.
Nós poderíamos, com sobras de justificativa, passar o resto de nossas miseráveis vidas lamentando profundamente as guerras. Isso sequer pareceria inadequado. Qualquer ser humano que se incomode com assassinatos tem uma grande chance de ser uma pessoa decente, mesmo que seja ranzinza. Eu proponho ainda outra opção: deixar o papel de resignação para aqueles que se aposentaram do trabalho de criar o mundo.
É ingênuo pensar que a criação é uma tarefa concluída. Há quase tudo a ser feito, especialmente no que diz respeito à consolidação da paz entre os povos. Pode ser que este texto contenha mais ou menos elementos do que o necessário para uma sustentação clara. Então, antecipo-me e garanto que estou aberto a discuti-lo. Vou evitar referências e compartilhar apenas o que está vivo em mim.
O linchamento do inocente Jesus é, sem qualquer dúvida, uma prova de amor. É a partir desse ato fundador da paz que a roda da violência tem girado no vazio há dois milênios. Se havia, em nós, humanos, a necessidade de dilacerar um corpo para a execução de um rito de passagem, esse desejo foi realizado. Se a civilização ocidental está fundamentada nesse ato, e está, então podemos progredir para a consciência decorrente desse ato: “o que fizemos?”.
Tenho pouca ou nenhuma vontade, na verdade, nenhuma, de submeter minha razão às interpretações religiosas dos textos religiosos. Na minha concepção de Deus, sequer está na índole dele promover coisas pequenas ou privilegiar pequenos grupos. Com isso, espero ter explicitado minha conclusão de que, independentemente da vertente religiosa, se o sacrifício humano de Cristo está presente, então não podemos — sob nenhuma emenda — compactuar com o assassinato. É, aqui, uma questão mais sociológica e histórica que mística.
A cisão abraâmica entre judeus e islâmicos é também uma questão sociológica e histórica, embora não somente isso. Pai Abraão, o que foi que o senhor fez? Delegar completamente essa questão civilizatória aos domínios da religião é o mesmo que abdicar do progresso civilizatório como um todo. Cem por cento dos pontos de vista sobre a guerra fundamentados no transcendente individual são inválidos para uma solução de paz.
Para nós, cristãos, fumar o cachimbo deixou nossa boca torta. Foram tantos sermões e músicas com o nome Israel destinado a ocupar um certo tipo de origem de nossa fé que agora, quando um país com o mesmo nome está no centro de uma disputa geopolítica, somos tentados a solucionar a interpretação com base em promessas de nossa religião.
Se a Bíblia tem qualquer validade para católicos e protestantes, em especial, e tem, recomendo uma leitura atenta do livro de Hebreus — meu favorito tanto pela literatura de excelente qualidade quanto pela contribuição à fé. Basicamente, o texto trata do sistema humano de contenção da violência que fracassou miseravelmente e apresenta uma perspectiva de elevação espiritual pela qual todo sistema religioso se desfaz a partir de um sacrifício final. É quando o deus étnico, regional, dos israelenses do Velho Testamento coloca em prática seu plano universal. Com o deus étnico morrem também os métodos ineficazes de solucionar o sofrimento humano, substituídos pelo amor.
Essa questão deve ser observada quando se trata da constituição de uma interpretação brasileira para a guerra no Oriente Médio. A influência de nossas crenças religiosas sobre a esfera pública política ficou ainda mais notável nas duas últimas eleições presidenciais. Se quisermos avançar minimamente na pauta da paz, devemos ser hábeis para redirecionar nossas emoções individuais para compartimentos mais adequados. Nesse passo, aquilo que é da experiência inegável e transcendental deve ser submetido a uma prova de relevância: minha perspectiva acarreta assassinatos? Se sim, tal perspectiva deve ser acolhida, respeitada interiormente, mas desconsiderada para sustentação racional e pública. Não se dialoga com o assassinato. “Matarás?”. “Não matarás”. Assunto encerrado.
A culpa decorrente do assassinato, problema que tentamos solucionar pela submissão ao plano divino da graça e outros recursos civilizacionais, pode ser inexistente dependendo do contexto em que a morte ocorre. Nas guerras, o homicida está integrado a uma formação artificial de massa, ou seja, o exército. Nessa adesão ao exército, o indivíduo renuncia ao seu padrão moral individual, que é substituído pela moral do grupo. Nesse caso, ele poderá matar à vontade, sem que se pergunte por que diabos está fazendo aquilo. As massas são formações perigosas, e suas vantagens, como o folclore, são as mesmas que nada na comparação com seus danos.
Estamos impregnados de violência há pelo menos trinta e nove anos, desde que cheguei ao mundo. Para não perder a sensibilidade, comecei a contabilizar a morte pelo sistema métrico internacional. Em minhas contas, tivemos que enterrar cerca de noventa e oito toneladas de carne humana fornecida pelo Hamas ao mundo. Competitivo, Israel foi ainda mais generoso em seu banquete, servindo-nos 450 toneladas de cadáveres — muitos ainda insepultos. Soluções completas para o futuro da humanidade, que estavam nessas pessoas, foram reduzidas à depressão alastrante, quando o cérebro apaga a luz.
As pedras do Passeio Público sabem que a origem nacionalista e religiosa da guerra rapidamente se transformou em um grande negócio. Agora, valem as regras do mercado. Jamais se tratou de uma Nações Unidas enfraquecida. É a habilidade de negociação dos povos que está enfraquecida, de modo que a diplomacia nos serve de índice. O patético veto dos Estados Unidos à Resolução do Brasil que previa ajuda humanitária, seguido pelo patético oferecimento de uma nova Resolução pelos mesmos Estados Unidos, levou ao veto da Rússia e da China. O embaixador israelense pediu a renúncia do secretário-geral da organização. Temos Estados Unidos e Israel conversando apenas entre eles, enquanto o resto do mundo espera atônito.
A constituição básica de uma esfera pública se dá por pessoas privadas que discutem com base em razões. A rebeldia não é uma razão. A submissão não é uma razão. A intuição não é uma razão. O impulso não é uma razão. É cedo para estimar uma data, mas não para afirmar que, diante de uma derrota tão humilhante, a diplomacia mundial terá que evoluir suas práticas comunicacionais e deliberativas. Teremos que elevar nomes acima de nós que traduzam nossa confiança na resolução de problemas — líderes inteligentes, éticos e, sobretudo, criativos em suas proposições.
Israel tem o direito de se defender? Não, tem o dever. O Hamas é um docinho de coco? Não parece diferente de uma milícia carioca, exceto pelo planejamento, pelas armas melhores e por uma mágoa ancestral. São instituições equivalentes? No que diz respeito à constituição formal, não. Mas no caráter decrépito de assassinar, seus resultados não são diferentes, exceto pela quantidade jorrada de sangue.
A história registra que os judeus foram objeto de ódio irresponsável perpetrado por inúmeras instituições. Esse ódio se manifestou de diferentes maneiras. Embora tenha atingido seu ápice no Holocausto, desenvolveu-se de maneiras mais sofisticadas — por que não dizer civilizadas — sem perder sua característica de ódio. A criação de um estado para esse povo, longe de ser um mero beneplácito da comunidade internacional, não esconde o verdadeiro propósito dos países de manterem os judeus afastados de seus territórios.
Sob a perspectiva da filosofia contemporânea, o que se compreende como luta por reconhecimento termina, de maneira lamentável, no judeu. Os extermínios dirigidos a pretos, estrangeiros desinibidos e toda sorte de gente não submetida, simbolicamente, se destinariam ao judeu. Essa interpretação é compartilhada por autores que chegaram a ela de maneira independente. O judeu da Bíblia, do Holocausto e da comédia, porém, não é a autoridade israelense contemporânea. Tal autoridade não é uma unanimidade nem mesmo entre os próprios israelenses, quanto mais na comunidade internacional. Além disso, o israelense nascido no Israel de hoje sequer é necessariamente judeu.
Se temos a liberdade de questionar o conteúdo histórico do Pentateuco e de outros compêndios judeus, e temos, podemos chegar rapidamente à constatação de que suas abordagens favorecem de forma desproporcional um povo messiânico que se autodenomina escolhido por Deus para governar sobre seus irmãos. Em linhas gerais e específicas, um judeu fundamentalista, à semelhança do fundamentalista islâmico, acredita ter licença para fazer o que quiser, pois Deus não somente o autoriza, como o ordena. Toda a obra salvífica que se consolida, para os cristãos, na morte de Cristo não tem nenhuma validade para esses fundamentalistas, então, para eles, a roda da violência gira em seu umbigo especial. Se não devemos constranger a crença religiosa do outro, e não devemos, mas essa crença transgride o código civilizatório, então poderíamos contar com a adesão do outro à discussão do código civilizatório, pelo menos.
O governo atual de Israel tem a aparência de um estado: tem um primeiro-ministro, eleições, mas suas ações demonstram que não se trata de um estado democrático suficientemente desenvolvido em relação às suas interações com o mundo. Isso se manifesta em uma recusa ao diálogo. É necessário observar os aspectos emocionais da relação entre Israel e o mundo. Ainda que as motivações intrinsecamente ligadas ao deus étnico e à prática de conquista de territórios ordenada por tal deus tenham sido superadas, restam os vestígios emocionais dessas experiências. É compreensível, embora lamentável, que o Israel atual esteja conectado à beligerância de seu passado histórico.
Quanto à Palestina, ela é o novo judeu — considerando a filosofia do reconhecimento mencionada anteriormente. Levada às últimas consequências, a ideia de que o abusado tem um enorme potencial para se tornar um abusador poderia se aplicar a um grupo, ou mesmo a um comportamento de massa. Daqui a dez anos, quando eu lembrar desta guerra, a menos que algo ainda pior me surpreenda, em minha mente haverá a imagem de uma mãe palestina que, aos gritos, reclamava que seus filhos estavam com fome quando foram assassinados. O povo palestino é subalternizado de muitas maneiras e por muitos interesses. As informações sobre esse povo, apresentadas neste artigo, estão disponíveis como anexo no canal do YouTube Outras Terras Filmes (http://outrasterras.com.br).
Um tempo atrás, procurei pela Palestina no Google Maps, e a encontrei no meio do oceano. À época, concluí que o mundo tinha terminado, pelo menos um projeto de mundo, ao encontrar um povo que tanto me ama e é amado por mim afogado no ódio em que alguém em algum lugar o afogou.
Hoje, depois do assassinato de centenas (o número é impreciso, mas impressionante) de palestinos que estavam em um hospital, eu me dei conta de que o mundo terminou para eles, que o apocalipse, o fim dos tempos, chegou para aqueles humanos. Viram a vergonha, a fome, e morreram.
Imagine comigo. De repente, uma autoridade estrangeira ordena que você saia da sua casa. Ao fugir sem carregar nada, sua jornada é de sede e fome. Depois, veem-se escombros, poeira, amigos e família estirados no chão, uns decepados, outros sem sepultura. Então você também morre.
Se isso, que é verdadeiro, não torna também verdadeiro que chegamos ao fim do mundo, então o que viria a ser o fim do mundo? Desastres naturais, por piores que sejam, pelo menos são honrosos. Ninguém poderá culpar o vulcão. Genocídio com apoio de grupos religiosos é fim do mundo.
A postura da comunidade internacional é insuficiente. A humanidade está demasiadamente paralisada na reação às guerras, os poderosos não são verdadeiramente poderosos. Não passam de homens do mercado! E de um mercado de almas, descrito lá no Apocalipse de João.
O convite para uma transformação pode ter inúmeras motivações. Em termos empresariais, por exemplo, pode partir da necessidade dos fundadores ou gestores de, ao criar um ambiente propenso à felicidade, aumentar a produtividade e, por consequência, os lucros. Em iniciativas governamentais, impulsionar os servidores e parceiros, pela percepção deles de segurança e reconhecimento, é um jeito de ampliar a criatividade, e de fazer os projetos andarem ainda mais rápido. Essas são motivações legítimas. Mas esses planos tendem a fracassar miseravelmente, apesar das excelentes intenções, se o emissor do convite não der provas de que se submeteu às mesmas transformações que propõe, e que essas o aproximaram de uma vida boa.
O termo “vida boa” pode ser observado a partir de muitos pontos de vista, da sabedoria ao teórico. Ele pode ser explorado pelas perspectivas da filosofia, democracia, teoria crítica (Habermas está frequentemente associado a tal pesquisa), mas nos importa sua versão acessível e carregada de humanidade: uma vida que encontrou um caminho suficientemente bom para diminuir o sofrimento. Uma vida que sofre menos é uma vida boa.
A maturidade, que evidentemente pouco tem a ver com a idade, pede sempre mais coerência. A coerência poupa energia, poupa tempo. O universo, coerente, usa seu poder para criar luzes, estrelas pequenas e distantes. A natureza, coerente, não pensa duas vezes antes de derramar o mar sobre o continente, quando isso deve fazer. Não se dialoga com o ciclone, com a erupção. Quem foi capaz de marcar uma reunião com as profundezas do subsolo e cancelar um terremoto? O aparente caos do ambiente é, a bem da verdade, a coerência da vida.
Nós, uma humanidade frágil diante da natureza e dos sofrimentos causados pelos outros, aprendemos, então, que a coerência é uma aliada da vida. É coerente, para o indivíduo que acredita sobre si mesmo que é menor que os outros, que emita sinais que organizem a consumação de suas percepções. É coerente que quem acredita, erroneamente, claro, que é maior ou melhor que os outros construa cenários que provem a ele que tem razão. Moral da história é: toda e qualquer vida humana, sábia até as últimas consequências, organiza o mundo para continuar viva. Se o único jeito de viver que aprendeu foi submetido, humilhado, mendigo de afetos, é coerente continuar assim, justamente para continuar vivo.
A defesa civil, entretanto, envia SMS quando os riscos de temporais são perigosos. Receber um convite para uma transformação é como um alerta da defesa civil. É um alerta de que as crenças e comportamentos estão prestes a causar mais um dano. Se é possível impedi-lo? Pela coerência: muito provavelmente não. Mas é possível criar planos de emergência, planos de futuro. É possível desocupar áreas perigosas da alma, mudar para paisagens mais altas, sóbrias, e refrescantes.
Quanto a mim (nos próximos parágrafos, decido não usar a tradicional primeira pessoa do plural freudiana), não ouso, não mais, convidar qualquer irmão (como chamo outros humanos) a algo que possa atrasar ou interromper o caminho dele.
Muito antes de acreditar em melhoras na qualidade da análise, da pesquisa, da técnica, tenho devoção pela liberdade humana. Ela pode ir para onde quiser, e terá, sempre que eu tiver condições, e for apropriado, minha companhia.
Se eu tivesse uma verdade universal, eu a apresentaria e, sem qualquer necessidade de convencimento, seria amplamente aceita. Jamais é o caso, porque o que compreendo por verdade pode não fazer o menor sentido para meu irmão. Mas tenho uma verdade ou outra não universal que às vezes é boazinha.
O certo é que costumo confessar a meus críticos intelectuais e políticos que estou em busca de um mapa de coerência. E não vejo a hora de mudar de ideia no que se pode mudar de ideia! De todo modo, realizei a façanha de ser relevante para mim mesmo, o que é muita coisa. Isso me poupa de de cair na lábia dos impostores.
Com isso, espero ter deixado claro que não posso, nem hoje e nem no futuro, prometer que tenho a revelação de um segredo, um jeito infalível, um milagre que pode render gargalhadas e dinheiro. Deixo essas promessas para quem tem experiência com elas: os que iludem e os que são iludidos (quase sempre pagam, em dinheiro, por isso). Isso não me desqualifica como vendedor, entretanto. Sob condições éticas, no papel de teleatendente, fui o melhor em vender débito automático na Tim Sul S/A, em algum mês de 2004, um ano antes de começar minha vida profissional no jornalismo.
Quando você me contratar, vai me remunerar pelo que posso fazer pela transformação que procura para si mesmo e para seus negócios. E será sempre muito mais caro do que os que iludem. Se a coerência é um diferencial de vida, que dirá de mercado.
Sou um pouco mais livre, e um pouco mais feliz, hoje do que fui ontem. Minha observação realista (embora eu seja um pessimista sereno) da vida é um suspiro desiludido. Quando, aos 15 anos, sofri amargamente o término de um namoro que tinha sido a melhor coisa de toda minha vida, e que jamais se repetiria, porque aquela era a minha única oportunidade de felicidade, e naquele momento só me restava viver em luto até minha morte solitária, um amigo que poderia ser meu bisavô me disse: “Vine, sabe qual é a vantagem de estar desiludido? É não estar iludido”.
No começo, deixar de acreditar em promessas deixa a gente incomodado. Depois, vai se tornando um estilo de vida tão sincero, tão honesto, tão coerente. Deixei de exigir dos outros que sejam o que eu espero deles. E não estou nem aí quando me exigem ser o que não sou. Entra por um ouvido e sair pelo outro. Ainda sofro, mas em uma vida boa, que sofre menos. No fim das contas, quem diria, eu sou um homem feliz, na medida do possível.