História que corre devagar

Da derrota à presidência, trajetória política de Lula expõe dilemas da esquerda brasileira desde 1989.

Vinícius Sgarbe
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Finalmente, já se sabe que eles não comem criancinhas nem são devotos de Satanás. Em tese, é o proletariado organizado. Filhos bastardos do pensador Karl Marx, os comunistas acreditam no estabelecimento da igualdade social – por isso são contra o capital privado. Perseguidos durante os anos de delírios autoritários Terra afora, hoje estão bem escondidos. Aliás, nem eles mesmos sabem onde estão.

Estudos antropológicos certificam que a política do “para todos” existe desde as civilizações mais remotas. Por isso, é impossível determinar a data do nascimento da ideologia socialista. É como tentar datar o nascimento da religião, por exemplo.

Mas, vamos aos fatos verde-amarelos.

1989. Esporte Clube Bahia ainda é o campeão brasileiro, Angela Visser é Miss Universo, morre Paulo Leminski, cai o Muro de Berlim e Collor é presidente do Brasil.

Nas primeiras eleições diretas do Brasil em 29 anos, os 22 candidatos à presidência e todos os outros brasileiros da República assistiram ao início da novela do Partido dos Trabalhadores (PT) para tomar o poder. Fundador e representante do PT, o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva fica em segundo lugar no primeiro turno e perde o segundo para o jornalista Fernando Affonso Collor de Mello. O sonho esquerdista lula-lá, uma estrela brilha, fica resumido a sonho por mais 13 anos.

O engomadinho fluminense/alagoano sobe a rampa do Planalto e dois anos e meio depois é rechaçado de lá por impeachment, sob acusações de corrupção. Nesse país de gente bronzeada não cabia mais grito para compensar a imbecilidade das castas políticas. E da irrefragável sucessão estúpida vem o baiano do topete. Premiado ‘melhor objeto inanimado’ nesta reportagem, chega Itamar Franco com a URV do homem da Fazenda.

Parece que esta história está indo muito devagar.

O Itamar faz as malas e se despede do Alvorada para dar lugar ao sociólogo estudado no estrangeiro Fernando Henrique Cardoso. Por quatro anos foi o FHC nosso de cada dia. (Nessas eleições, o Lula ficou em segundo lugar, mais uma vez.)

Com um presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), vulgo tucano, brasileiros mais velhos assistiram à derrocada nacional promovida pelo neoliberalismo – que defende com unhas e dentes o capital privado, aquele repudiado pelos comunistas – e os brasileirinhos mais jovens aprendiam como as coisas não deveriam ser feitas em seu país. Se FHC é a direita, logo “o que resta é a esquerda”: é o pensamento, capenga, que assalta a politização dos filhos caras-pintadas.

Cada novo simpatizante dessa esquerda subjetiva teve sua ideologia promulgada por uma barbárie pátria. Tiros neoliberais que saíram pela culatra. As privatizações encabeçam a lista. Quando em 1997 a companhia Vale do Rio Doce foi vendida a preço de bananas para o Consórcio Brasil (e com subsídio do Banco Nacional de Desenvolvimento), alguns milhares de jovens apátridas atentaram para os negócios escusos do governo. As estatais de eletricidade, telefonia, dinheiro… foram graciosamente entregues ao capital privado, quando não externo. É claro que qualquer esquerdista que se prezasse não podia concordar com isso.

Letra A. No instante máximo de revolta contra as privatizações, os recém-nascidos nacionalistas vão às ruas e exigem a reapropriação dos bens públicos – não.

Letra B. O Movimento Estudantil fecha universidades, professores fazem greves. Secundaristas bloqueiam escolas e exigem a volta do estudo técnico – não.

Letra C. Cada brasileiro cuida de seus afazeres cotidianos enquanto FHC toma um avião para viajar em mais uma missão diplomática secreta. Quando volta, advoga a reeleição no Brasil, faz campanha chantagista azul e amarela, ganha o pleito e estende seu mandato por mais quatro anos. (Nessas eleições, o Lula ficou em segundo lugar, mais uma vez.)

A onda de privatizações alcança o Paraná. Também serviços fundamentais dos municípios. Os itens do estado ficam à mercê dos grandes conglomerados econômicos.

Aqui, o ex-PDT, então PFL-comparsa-de-tucano Jaime Lerner promove o sucateamento mecânico e midiático da Copel, para convencer de uma suposta crise pela qual a estatal passava. A ladainha não se sustentou.

A tolerância dessa tímida e anômala nova esquerda em relação aos desequilíbrios nacionais acaba com as eleições presidenciais de 2002. Serra negava o apoio de FHC à sua candidatura e a estrelinha brilhando, mais uma vez. A Regina Duarte dizendo “eu tenho medo” do Lula na televisão serviu para afundar mais as coisas. O apelo veio berrante. Veio ridículo. Neoliberal.

Comoção nacional. Os jornalistas mais herméticos reportam a vitória com uma empolgação excedida. O tucano caiu e se ergueu a estrela. Finalmente, Lula-lá subindo a rampa.

Os quatro anos que se seguem são desenhados pela expectativa da população a respeito das ações de Lula.

Uma comedida estagnação econômica é o preço de uma rarefeita redistribuição de renda no país através de ações afirmativas em programas sociais e cotas em universidades. Mas logo o politicamente legitimado PT recebe acusações de corrupção. Valerioduto, mensalão, e com os companheiros parlamentares também sanguessuga. Mas não ouve escândalo suficiente para impedir a reeleição do presidente Lula. A esquerda (de Lula) não era ruim.

Então, encontrou-se nas campanhas para presidência de 2006 um momento de reflexão nacional. Por que o Lula estava na frente nas campanhas? O adversário juvenil de Lula, Geraldo Alkmin, dizia “vou manter o Bolsa-Família”. As classes C, D e E, que aumentaram seu poder de compra nos quatro anos que haviam se passado pensavam em qual seria o benefício da mudança. E não havia. Razão pela qual ainda estavam com Lula. O país inteiro sabia da corrupção que havia existido, mas ajustou o foco nisto: “desde sempre ouve sujeira na política, compra de parlamentares”… e isso não era o mais importante naquele momento. O mais importante era que a dona de casa estava com um carnê para pagar a geladeira nova e pensava “a vida está melhorando”. A esquerda (de Lula) não era ruim.

Aquela nova, jovem e empírica esquerda recebe as classes economicamente subjugadas pelo neoliberalismo. E no segundo mandato o presidente Lula diz que esquerda, não. Equilíbrio. Mal-interpretado pelos profetas do caos, o presidente ainda trata de explicar com palavras. Nem era necessário.

A América Latina ruma avessa. Venezuela e Colômbia são os exemplos mais radicais da ideologia esquerdista que nos precedeu. Enquanto estabelecem regimes autoritários são duramente criticados pelo mundo. Não que a crítica do mundo seja uma máxima, mas até mesmo o cristianismo advogado por Hugo Chávez ensina algo como “fazer-se de tolo, para ganhar os tolos”. Já o Brasil, com sua esquerda peculiar, é listado com Rússia, Índia e China para se desenvolver amplamente nos próximos anos. Inflação controlada (nada de 80% como a Regina Duarte disse), risco-país caindo gradativamente, moeda forte, aumento do poder de compra das classes que ganham menos de cinco salários. Tem mais coisa, mas agora com certeza essa história está indo muito devagar.

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Sétimo dia / parte um

Cenário de desolação doméstica e lembranças torturantes revelam as batalhas íntimas do protagonista nos anos noventa.

Tempo previsto
14/4/2025

Os demônios do sábado viriam irrefragavelmente para fazer lembrar a calamidade dos anos passados, quando tempestades de areia, dragões e bestas passaram pela cidade deixando um rastro inconfundível de desastre. Desde o Grande Tormento, em meados de noventa, todo sétimo dia da semana virou um calo na bunda da alma, de modo que, aos sábados, Xavier crescia eternamente para dentro de si e se deixava envergonhar por sua fraqueza extrema, para o deleite de seus adversários: demônios fajutos, aos quais destinou respeito mais por misericórdia de si mesmo do que por medo.

O cenário da tragédia única, a casa, era um cubículo popular feito do acúmulo de tijolos e telhas de barro, com as paredes recobertas de concreto, cal virgem e demãos sobrepostas de tinta brilhante. Para o norte, uma das duas águas do telhado corria até o beiral em um desenho sustentado por três janelas de ferro oxidado e vidros ambíguos, para barrar o vento e com seus desenhos matelados esconder as entranhas da casinha.

Para o lado que enxergava primeiro a luz do dia, duas portas de pinus vestidas de cinza abriam a cozinha e a sala de estar, que mais era uma continuação. O fogão, o armário suspenso, uma mesa judiada pelos anos, o pavimento pigmentado vermelho sangue. Mais uma porta da cozinha para a sala e lá estavam, evidentemente, móveis betumados, envernizados, lixados, novamente betumados, envernizados, lixados, pagos em prestações.

A estante segurava o telefone, porta-retratos baratos e bibelôs presenteados por amizades brejeiras. Em seus armários estavam caixas e dentro destas mais caixas e ainda dentro destas mais caixas e pastas com papéis, contas a pagar, comprovantes, boletins, recortes de jornal, diários, cartas de amor e lixo, e pó, e memórias gravadas, pois importantes apenas para seus proprietários. Ao seu lado, a mesa de seis lugares para as refeições festivas, para a leitura, para o escritório improvisado de uma casa administrada por uma mãe sistemática, detalhista, contabilizada a cada palavra.

Então o corredor de onde fluía o que se chamava de três quartos e um banheiro. O recôndito de um casal unido apesar dos amores controvertidos, a despeito dos desencantos da vida regular, o quarto de Xavier e seu irmão menor, as camas paralelas, o guarda-roupas, o lugar da televisão. O quarto da televisão. A família: pai, mãe, dois filhos e a televisão.

Para o sul, um puxado de fibra de amianto criava a lavanderia, ou uma porta dos fundos coberta, com uma máquina de lavar roupas, e também onde estava o terceiro umbral de acesso à cozinha. Tantas portas a perfazer o caminho suntuoso das inversões domésticas.

A edícula nascia do quintal de grama crescida e mato rasteiro, pois em meados de noventa ainda havia muitos quintais e cento e vinte e três pomares na cidade. Careciam daquele amontoado esdrúxulo de vigas podres e telhado de fibra castigado pelas chuvas de granizo apenas para proteger o carro das amoras que caiam da árvore do terreno vizinho e também das merdas de pássaro. Depois de alguns meses de treino, as aves ficaram tão meticulosas que raramente erravam o carro, mirando o cu para que a merda atravessasse os rombos feitos pelo gelo na cobertura e acertassem o veículo.

O muro de tijolos vistos na última limitação do terreno era a escada pela qual Xavier e seu irmão subiam para apanhar amoras e brincar em cima da podridão, arriscando suas vidas no mais instável solo daquele habitáculo melindroso.

No outro extremo, para o qual a fachada se exibia para a rua, passava a mureta e em um trecho dela o portãozinho de madeira velha. Tudo baixo, para qualquer criança atravessar sem o auxilio dos adultos. Esses elementos todos, cozinha, televisão, merda, fundos, estavam plantados atrás dos pés de ipê amarelo e bracatinga, duas árvores pobres, inabaláveis, esguias, perdidas na forma imóvel e vegetal. Árvores impressas no solo tal qual um selo, garantindo o trânsito das correspondências e eternamente se despreguiçando com seus galhos longilíneos, repletos de pequeninas folhas. O retângulo onde cabiam as explicações anteriores juntamente a outros retângulos formava um bairro de novos trabalhadores potencialmente controlados pela significação adequada em cada fase e que nesta última tinham comprado a casa própria.

Quando tudo estava assim, exatamente assim em cada detalhe expandido pelo repertório e índole de significação de meus leitores, era sábado, meados de noventa e o desastre se anunciou quando havia passado o dia. Pelo deslocamento absurdo dos signos e trópicos, Xavier se achou sozinho quando fendas baforentas de enxofre, iluminadas pelo plasma incandescente, vomitavam insetos desconhecidos, mutações de lobos selvagens e répteis peçonhentos. O calor derretia cada paz que tivesse havido, a estiagem secava cada rio, cada veia de sangue, até petrificar as vísceras.

(Continua)

Vida e morte de João Ninguém

Crônica revela burocracia e alto custo por trás da morte anônima de um cidadão comum em Curitiba.

Tempo previsto
11/4/2025

A morte mexe com o imaginário das pessoas. Talvez por essa razão haja tantos leitores assíduos dos obituários nos jornais. Por descuido ou por maldade, na edição de hoje morreu um quase homônimo do mestre trágico Nelson Rodrigues. “Nelson Rodrigues Chaves, aos 72, casado com Teresa da Silva Rodrigues. Deixa filhos.” (Folha de S. Paulo, 17/06/07, pág. C6)

Era brasileiro? Qual sua profissão? Seria médico, engenheiro ou pipoqueiro? Talvez nem trabalhasse e ocupasse todas as tardes na janela, junto a uma máquina de escrever, reportando a desgraça alheia e guardando os papéis em uma caixa de papelão, em cima do guarda-roupa. Ou ainda estivesse há vários meses convalescendo, depois de uma cirurgia no intestino, quando descobriu ser portador de uma doença degenerativa que o levou à morte três meses depois.

Terá traído a mulher? E se o fez, gostou e repetiu ou se arrependeu e confessou? Roubou algo, atirou em alguém, voou para a Europa, gostava de maçã do amor, comprou algodão-doce para as crianças, teve um vira-lata chamado Bob? Colecionava selos, consertava tudo com Durepox, pintava à mão uma coleção de miniaturas de navios piratas?

Mas a notícia é que o corpo do querido Nelson repousa no cemitério da Vila Nova Esperança, em São Paulo, e por aqui, na terra das Araucárias tem gente que morre também.

Foram 38 para o saco no domingo enquanto Curitiba dormia no sofá depois do almoço. Donas de casa, epiléticos, afogados e indigentes, todos “dessa para uma melhor”, como reza a cartilha da condolência. O dado é do Serviço Funerário Municipal (SFM) da Prefeitura.

Para enterrar João Ninguém

Morrer é trabalhoso e caro. Melhor é continuar vivendo. A reportagem do Comunicare saiu para enterrar João Ninguém. João Ninguém, 23 anos, drogado e prostituído.

A primeira labuta é conseguir o atestado de óbito. Se morrer com assistência médica é de um jeito, se morrer sozinho é de outro, e é diferente de for morte violenta. Repetimos, melhor é continuar vivendo. Como João morreu atropelado, seu corpo foi levado ao Instituto Médico Legal. Depois disso, com o atestado na mão, é a vez de ir ao Serviço Funerário. De lá sai a guia de liberação de sepultamento, documento obrigatório para a inumação em qualquer cemitério da capital. Subtotal: a primeira dor de cabeça.

João Ninguém agora precisa de uma urna funerária – bem, quem precisa é a família. E quando a família não existe ou se preocupa, quem precisa é o Estado. O preço desse produto mórbido é tabelado pelo Serviço Funerário. São 13 modelos e os preços variam de R$ 171 a R$ 3.840. Fora da tabela, existem ataúdes de até R$ 12 mil, em imbuia maciça, cetim, renda e alças douradas. Vai do gosto do cliente, ou do antigo gosto do cliente. Tem para crianças, gordos demais, altos demais.

Vale a pena orientar que se morra sem ultrapassar os 80 quilos, senão é necessário comprar urna especial e isso encarece tudo. Sejamos muito econômicos. A compra do caixão mais barato inclui o transporte do corpo até a funerária, o tamponamento – como se chama encher o sujeito de algodão -, a ida para o velório e finalmente para o enterro. Mas o corpo de João precisa de uma tanatopraxia – um tipo de embalsamento – que custa R$ 470. Subtotal: R$ 641 e algum choro.

Mas João Ninguém foi um homem muito bom e merece ser floreado para receber as últimas homenagens de seus parentes e amigos. Crisântemos de odor pouco agradável a R$ 144, coroa de flores murchas a R$120, e um veuzinho de tule a R$ 15. Subtotal: R$ 279 e uma noite maldormida em cima do defunto.

Campos santos

Em 1790, ouviu-se pela primeira vez sobre a criação de cemitérios públicos em Curitiba. Antes disso, os clérigos eram sepultados em suas capelas, os ricos juntos com os clérigos e os pobres (incluindo os que construíram as capelas) ficavam a sete palmos do chão no lugar que o corpo incomodasse menos. Já o sepultamento suburbano – longínquo da vila e em cova rasa – carecia de autorização na qual a família se comprometia a transladar os ossos dos seus para um campo santo posteriormente.

E nosso querido vai ser enterrado onde? Se nosso amigo fosse indigente, o Estado dá uma lugar no Cemitério Santa Cândida e três anos depois o que sobrou dele vai para o ossário. Se não pudesse pagar, também. Como não é o caso, por R$850 ele tem uma gaveta em cemitérios paroquiais. Mas existem jazigos de até 14 mil para sepultar até três pessoas simultaneamente. Como João Ninguém terá uma despedida modesta do mundo dos vivos, vamos colocá-lo em algum cemitério São ou Santo Alguma coisa. Subtotal: R$ 850 mais taxas burocráticas.

Adeus, João Ninguém. Saudade do dinheiro gasto com sua partida. Total: R$ 1.770, sem nenhum luxo.