Polarização vira negócio e desmonta o mapa comum da esfera pública brasileira

Sem regulação efetiva, plataformas lucram com a radicalização e corroem o espaço cívico.

Observamos, na lucidez cortante de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho — o Boni —, uma dissecção da alma do entretenimento de massa que ultrapassa a mera crítica televisiva e se converte em um diagnóstico preciso sobre a nossa esfera pública contemporânea. Ao contrastar a novela tradicional com as novas narrativas verticais, Boni oferta-nos uma metáfora perfeita. A teledramaturgia clássica nasce como um rito de comunhão: a família reunida na sala de estar, a nação em debate sobre o destino de uma Odete Roitman, a construção de um imaginário coletivo. Todavia, a gramática da tela vertical, desenhada para o celular, rompe brutalmente esse pacto civilizatório.

A experiência no dispositivo móvel revela-se, por excelência, uma jornada de isolamento. O jornalismo, que em sua concepção platônica deve emular a função da novela tradicional — ao estabelecer uma cartografia compartilhada de fatos e relevâncias —, vê-se agora fragmentado. O telejornal, outrora a fogueira tribal ao redor da qual nos aquecíamos com a mesma verdade factual, cede espaço à "novela vertical" do noticiário algorítmico.

Navegamos, pois, em um oceano de informações atomizadas, onde cada indivíduo desenha o cardápio de sua própria realidade e apaga os mapas comuns de convivência. O fato deixa de ser um imperativo da realidade para converter-se em uma projeção psicológica do usuário. A recente prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro descortina esse abismo e revela uma esquizofrenia moral que oscila, perigosamente, entre o cômico e o trágico.

Testemunhamos, atônitos, aqueles que hoje celebram o encarceramento e promovem a exposição vexatória do adversário, em flagrante contradição com suas bandeiras históricas de defesa dos direitos humanos e do garantismo penal. Simultaneamente, vislumbramos a alegação de injustiça por parte de quem, sem qualquer pudor, divorcia-se dos fatos.

Há, inclusive, a figura emblemática de um parente nosso — outrora orgulhoso da "soberania popular" quando seu candidato triunfou — que agora chama esse mesmo povo de "idiotas" por não partilhar de sua indignação seletiva. Tal incoerência denuncia a urgência de nos emanciparmos dessas forças políticas polarizadas, caso ainda nutramos o desejo de preservar algum vestígio de civilidade.

Entretanto, compreendemos que essa polarização não constitui um acidente de percurso, mas um modelo de negócios sofisticadíssimo. O vácuo deixado pela digitalização do jornalismo encontra preenchimento em grupos que monetizam a fúria. A análise de Pedro Doria lança luz sobre essa mecânica perversa: a maioria da população desconhece a relação intrínseca entre jornalismo e democracia. O dado mais alarmante, contudo, reside no financiamento: nenhum grupo demonstra mais disposição para custear o conteúdo noticioso do que a parcela mais desinformada da sociedade.

Doria detalha que a "direita bolsonarista-raiz", embora represente apenas 12% do eleitorado, compõe justamente o núcleo que financia essa engrenagem. O mercado, em sua lógica implacável, responde ao incentivo: se há quem pague para ter suas crenças validadas, edifica-se uma realidade paralela completa. Enquanto quase metade dos brasileiros identificados com a esquerda ainda recorre à TV como fonte primária, a direita pulveriza-se nos meandros das redes e aplicativos de mensagem — alcança 9% de uso como fonte principal, contra inexpressivos 4% da esquerda. O resultado é um "jornalismo" de viés, que lucra ao sussurrar exatamente aquilo que o assinante radicalizado anseia ouvir.

O problema tem, para além da raiz econômica, uma origem regulatória. O jornalismo tradicional opera sob o jugo republicano das concessões públicas. A Constituição Federal, em seu art. 221, e o Decreto nº 52.795/1963, impõem deveres claros: finalidades educativas e a obrigatoriedade de serviço noticioso. Há um Ex Ante, um dever prévio de civilidade. Na internet, contudo, vigoramos sob a lei da selva ou, mais tragicamente, sob a ausência dela. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), ao estabelecer a inimputabilidade da rede em seu art. 19, isenta as plataformas de responsabilidade editorial. Não há o contraditório; há apenas algoritmos privados que otimizam o engajamento pelo ódio.

Neste cenário de vale-tudo, o esforço da imprensa profissional para manter a sanidade dos fatos soa como um grito no vácuo. O último relatório do Lab Jornalismo 20501 sobre a cobertura da prisão de Bolsonaro demonstra uma neutralidade quase estéril dos grandes veículos (78% de viés neutro), focados na narrativa factual. No universo de 109 menções, o relatório registra 17 favoráveis à prisão (15,6%), sete contrárias (6,4%) e 85 neutras (78%). Todavia, tal conteúdo mostra-se incapaz de perfurar o bloqueio cognitivo dos grupos que pagam para habitar a realidade paralela. A avaliação recai sobre nove dos dez veículos on-line mais acessados do país segundo o Reuters Institute Digital News Report 2025.

Para reavermos um mapa comum e escaparmos dessa novela vertical onde cada um protagoniza seu próprio delírio solipsista, carecemos de novas soluções. Se a busca pela felicidade já se insinua como meta de política pública, talvez seja o momento de considerarmos o "amor" — não como o romance folhetinesco, mas como a empatia cívica e a busca socrática pelo terreno comum — como princípio pragmático para a reconstrução do espaço público. Sem isso, continuaremos prisioneiros em telas apartadas, e pagamos assinaturas caras para odiar o vizinho, enquanto a democracia desmorona silenciosamente em uma sala de estar vazia.

1. A amostra de veículos analisados compreende: Globo News online (G1), UOL online, Globo.com, O Globo online, Record News online (R7.com), CNN Brasil online, Metrópoles.com, Band News online e Folha de S. Paulo online. O portal Yahoo! News não foi incluído devido à indisponibilidade do site no momento da coleta. A análise foi conduzida em 23 de novembro de 2025, utilizando a linguagem de programação Python para o processamento do código HTML das páginas iniciais. A metodologia consistiu na raspagem (web scraping) de todos os títulos hierarquizados nas tags de cabeçalho (H1 a H6). Posteriormente, realizou-se uma filtragem semântica para selecionar exclusivamente as manchetes relacionadas à "prisão preventiva de Bolsonaro".