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Cartas pessoais

Desarmamento e fraternidade no último sorriso de Francisco

O Papa que se despede enfrentou tsunamis de ódio, e deixou lições amorosas. Seus conselhos foram breves e profundos.

Tempo previsto
22/4/2025

Francisco foi um excelente pai para a Igreja. Chamo-o assim, pelo primeiro e único nome, porque deixou em seu testamento que deveria ser a inscrição em seu túmulo: “Franciscus”.

Escrito na metade de 2022, o texto oferece o “sofrimento que esteve presente na última parte” da vida do Papa ao “Senhor, pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos”. Infere‑se que, desde então, a despedida esteve em suas preocupações.

É coerente sentir estranheza diante de um líder que telefonava para o pároco de Gaza, e que não se esquivou de pedir o desarmamento e o fim da guerra. Naquilo que chamava de “globalização da indiferença”, os homens passaram a consumir os horrores da natureza violenta sem tomar qualquer providência.

Certamente ele foi atingido pelos tsunamis de ódio que cobriram a comunidade humana nos últimos anos. Nesse sentido, nunca vi tanto descompasso entre católicos. Porém, não me surpreende em nada. Afinal, quem não está perdido?

O riso de Francisco vai fazer muita falta. Seu jeito simples de oferecer conselhos, e de ensinar a dar conselhos. Para ele, um sermão não deveria passar de oito minutos. Que respeito aos ouvidos, e ao tempo dos outros! “O senso de humor é um certificado de sanidade”, defendeu.

Pergunta-se, com razoável preocupação, o quanto as lições de caridade ensinadas por ele estão aprendidas, quanto internalizadas. Para que nenhuma geada queime a lavoura de novos cristãos, os cardeais têm agora o trabalho de escolher um Papa que nos ame.

Uns dias antes de morrer, no fim do ano passado, meu avô Jorge ouviu Ravel comigo. Dedico essa memória.

Médiuns sem escuta e espíritos subempregados mantêm pateta

Reflexão provocativa relaciona comunicação, espiritualidade e ruído como caminho para clareza e entendimento.

Tempo previsto
11/4/2025

Falho repetidamente. Agora mesmo, falhei no propósito de ir para a cama às 21h30. Por alguma razão parecida com “puta que pariu! Eu não durmo mais que quatro horas mesmo”, entreguei-me à deriva da escuridão.

Temo que uma autoridade severa chore para me disciplinar: “não é hora de ir ao banheiro”. Atividades em geral. Os chats da madrugada chegaram ao fim, cobertos de areia, desintegrados por um choque, incinerados. Dá aquele dózinho. Toda aquela literatura caótica que me trouxe tantos amigos enlouqueceu, e fala sozinha nos posts do Mark.

O livro que Maku me enviou é bem escrito, claro, mas é lido em supercâmera lenta. A personagem começa a se revelar a partir da vontade de morrer. Não se encontra gente honesta assim com facilidade. Como torradas com cream cheese e geleia de frutas vermelhas. Foi a caixa, o pote. Troquei por nata. Nata não tem erro.

Esse fractal, então: a morte e a vida se explicando pouco, falando rápido e alto, tal qual turistas brasileiras de batom vermelho e bolsas tiracolo encantando o mundo com uma malcriação sorridente. Minha análise, a seguir, é sofisticada.

Há desafinações da vida que são, é preciso repetir, forças da natureza. Desafinações, neste texto, são metaforicamente Meryl Streep interpretando Florence Foster Jenkins no cinema, ou qualquer instrumento que deveria vibrar um sublime “ooowooowooow”, mas acaba por materializar a Vó Jephinha se aventurando fora do tom, sem melodia.

Gosto da água porque ela não perde tempo com pedra ou muro; desvia, aceita um bom túnel, mas, se precisar, arrebenta com tudo. A água toma para si terrenos que nem vocação para piscina tinham, repousando ali uma inundação calamitosa.

As regiões do mundo que estão para desaparecer precisam de suporte intelectual para resolver questões de propriedade, repatriação e o retorno de burocracias previsíveis. Não se pode erguer uma ilha na parte de cima de um sobrado; nem mesmo catedrais japonesas de drenagem fazem diferença no oceano. Perigos assim equiparam nossa inteligência a nada. A natureza é uma das três fontes notáveis de desprazer na psicanálise freudiana.

“E de todo esse instrumento desafinado eu nunca fui aprendiz.” Há esse verso numa letra de Gabrielle Seraine. E na música dela também, quando se canta “[desa]finado”, quando se canta exatamente “finado”, a harmonia se despedaça por um instante, como uma criança filha da puta assoprando uma flauta de plástico. É o vale antes do topo, o “dark before the dawn”.

Espírito de Flusser

Quando o indivíduo desafinado — o “médium” (de mídia, não de falar com mortos) — emite ruídos, a comunicação fica mais nítida. Vamos usar a palavra “comunicação” como um sinônimo futuro para “espírito”, uma belíssima concepção de Flusser.

Nas religiões que lidam com “espíritos”, note-se a similaridade na condução das intenções: portas são abertas e fechadas, pessoas são estimuladas a movimentar a psique, e até mesmo pedidos banais que não passam de burocracias previsíveis. Pede-se, promete-se, agradece-se, expulsa-se, infunde-se — tudo pela conjuração de palavras humanas e inteligíveis.

Aceitar a Jesus, renunciar à maçonaria, declarar a vitória, tomar posse da bênção, fazer macumba para a Dona Ida morrer (criança é muito inventiva) — tudo isso requer falar. Do feitiço do Pai Grego à corrente de oração Sete Batidas na Porta da Graça do pessoal da Janine. Comunicação. Fala. Escuta.

Em alguns cultos evangélicos, diante de uma comunicação insatisfatória, é provável que alguém passe a fazer o papel de endemoniado em favor do grupo. A missa católica tem tantos recursos de comunicação que uma parte do sermão acaba guardada.

Os “espíritos” são assunto antigo, primitivo. Foi o jeito de manter os mortos por perto. Depois, esses mortos viraram demônios. A história registra em termos antropológicos; tenho aqui um original do Frazer que ganhei de Luca. Meu ponto é: se os espíritos “nascem” de mortos domésticos, é natural que, antes de se comprometerem com eventos fora de casa — falando em reuniões espíritas, fazendo vento — estejam disponíveis no inventário da família.

Poderosos porém patetas

Há poder na psicanálise, na Análise Transacional, nos Narcóticos Anônimos. Mas esses empreendimentos precisam de muito mais tempo, especialização e oportunidades para erros do que se pode alcançar em família, quando uma família está disponível. Família, claro, entenda-se amplamente.

Uma família que tenha compreendido a perenidade do amor, que tenha deixado as lutas por reconhecimento para práticas comunitárias, tem mais chances de sucesso na invocação de espíritos poderosos.

O poderoso espírito do criador, para aqueles que creem assim, tem de fazer alguma diferença. Deus está morto? Não se engane. Escrevo sobre comunicação. Sobre conjurar, invocar, boa comunicação. Na última linha do ruído, “tomar posse da bênção”, como bem observado por Nina.

Em português, “espíritos” são comunicação pelo menos desde 1976, quando Cartola compôs: “De cada morto herdará só o cinismo”. A partir do meu tensionamento, Flusser nos oferece uma simplificação: é muita “batalha espiritual” para pouco “conversar igual gente”.

Voltemos. A relação do desafinado, do finado — propriamente a palavra em questão, ruído, essa coisa que perturba o sono — com a nitidez não é somente poesia. A física e a engenharia de computação que sustentam a geração de imagens procedem da utilização de duas etapas bem básicas que não prejudicam uma à outra.

Para melhorar a pele de alguém em uma fotografia, é preciso primeiro o carinho do embaçar, como um hipermetrope sem óculos. Depois, tem de adicionar ruído, algo parecido com a TV antiga sem sinal. E então se pode ver melhor.

Assim, minha sugestão para o grupo — risos — é uma apreciação do ruído, junto a uma observação atenta dos conteúdos das perturbações. Quando acabar essa pilha, com mais nitidez, sejamos arrogantes em nossas pretenções de dignidade,

Só que eu ia escrever sobre algo completamente diferente. Vou fazer outro post.

Ridículo e coragem são bem-vindos para ser quem se é

Ser autêntico exige superar medos e estar disposto a enfrentar os julgamentos externos com coragem e verdade.

Tempo previsto
11/4/2025

Os ares de novidade que uma virada de ano traz parecem com os efeitos de uma renovação de votos. É, digamos, uma oportunidade. A título de analogia, uma cerimonia de bodas por si mesma é impotente para realizar mudanças no casal, no sentido de ampliações de confiança e de reciprocidade, e da consequente felicidade dessas ampliações. Uma cerimônia em si não é nada, mas a concentração da dupla para uma aquisição de consciência melhor é sim. Com o ano novo é muito parecido.

É completamente compreensível desprezar a contagem do tempo pelo calendário comercial, quando o que se intenciona é uma vida livre e frutífera. Uma história pessoal não poderia estar (mas frequentemente está) sujeita à mecânica do trabalho exaustivo: férias, recessos, e feriados. Coisas dessa categoria são muito bem-vindas, é claro, mas correspondem quase sempre à lógica da indústria e do consumo. Daí entra aquele provérbio: “quanto mais você tem, menos você é”.

Nesses contextos, comprar uma roupa nova para o réveillon pode ser uma atitude ambivalente. Em uma mão está a obrigação da compra, da competição que se estabelece com os outros convidados da festa. Na outra está uma legítima disposição para o autocuidado, e para que a parte externa corresponda à novidade do eu mais íntimo.

Para mudar de ano dentro de si é requerido um certo ridículo. Isto é, cruzar a linha do ridículo. Em vez de uma fantasia, vestir-se com o que realmente corresponde ao que se é. Não é fantasiar-se de ser, é ser em essência. Algo interessante é o fato de que aquilo que se deseja ser no futuro somente pode ser verdade se o for agora mesmo. Essa é uma ideia muito básica da filosofia. É também verdade que se algo deixou de ser é porque jamais o foi.

O que chamei de ridículo anteriormente poderia ser também chamado de coragem. Calçar os próprios sapatos, abrir o peito: pensar, falar, agir, e festejar a partir do que se é verdadeiramente, que sempre o foi, e será para sempre. Mas a coragem está menos no aspecto comportamental, que até mesmo um ator canastrão poderia interpretar com toda covardia, e muito mais em uma permissão para que o espírito individual comunique ao mundo o que veio fazer.

'Que Natal mais lazarento, Pedro!', e histórias de São José

A memória afetuosa e bem-humorada do convívio entre vizinhos revela alegrias, conflitos e ironias de outros Natais.

Tempo previsto
11/4/2025

Compadre Pedro é o nome composto do saudoso vizinho Pedro Zotto. Ele e meu avô Jorge Camargo, por sua vez Compadre Jorge, ergueram suas casas em uma área desurbanizada de São José dos Pinhais, a partir dos anos 1950. Foram tão amigos que, além das casas em esquinas do mesmo cruzamento da Avenida das Torres, compraram mausoléus lado a lado para a aposentadoria. Compadre Pedro mudou-se para o último endereço há alguns anos.

Enquanto os maridos se davam muito bem, as esposas travaram guerra permanente. Embora comadres, não perderam nenhuma única oportunidade de causar as mais divertidas confusões. "Vizinhas Muito Loucas", na sua Sessão da Tarde. Eram brigas tão banais que sempre tivemos a impressão de que acima de tudo ficava o cômico. Comadre Ida também mudou-se para o último endereço.

Ambas as famílias passaram pelas dificuldades características daquelas que são pobres e têm qualquer dignidade. Foram saqueadas, principalmente, por ideias religiosas, por ilusões terríveis. Tentaram, por uma vida, resolver as coisas com feitiços. Velas, correntes de oração, junto a bastante intolerância religiosa. Quem jamais se deixou afetar por essas bobagens foram os compadres. E as então crianças.

Uma das brincadeiras daquelas crianças que eu adoraria ter filmado era o casamento. Havia noivos, mãe e pai dos noivos, padrinhos e, claro, o padre. Juarez pegava escondido o vestido preto da Comadre Ida para fazer de batina. Também realizavam cultos de exorcismo. Certa feita, o pai de uma criança do bairro viu que o filho interpretava um endemoniado e soltou a cinta em cima do menino. Sem contar a “macumba para morrer”, que juntava pedras e um pouco de mato. A liberdade infantil muito rapidamente se converteu em imposição cultural, e as brincadeiras acabaram.

Contam os mortos, não poucos, que em mim deixam saudade e também raiva. Uma das minhas neuroses é culpar os mortos por suas mortes, não os perdoo por terem me deixado sem eles.

No último Natal, a bisneta de Compadre Pedro esteve no colo do Compadre Jorge. Íntegro feito um carvalho de tronco grosso, Jorge chorou duas vezes ao ver a antiga casa dos Zotto demolida. E outra vez chorou quando segurou a bisneta que também é dele.

Há cerca de trinta anos, quando a festa de Natal era a mesma para aquelas famílias do coração, e a degenerescência da vida estava em pleno vapor, um parente de Compadre Pedro disse a ele a frase que se repete várias vezes ao ano até hoje:

—Que Natal mais lazarento, Pedro!

'Quanto tu suportas ser um homem inteiro?', em memória do Ideal

Texto memorial reflete sobre rejeição na adolescência como poderoso convite à construção de identidade autêntica.

Tempo previsto
11/4/2025

Quanto tu suportas ser um homem inteiro? Quanto longe vais tu, se te angustias quando rejeitado por teus coleguinhas de oitava série? Quando os leva em conta, repetes-te pequenininho e frouxo. Sentes-te a metade de uma laranja podre. Mais especificamente. Um tanto laranja do Fábio Jr., e outro tanto de fruta podre. Tanto que poucos do Ideal são inteligentes para decifrar.

Quanto aos meninos, Paulo te daria um tapa gratuito no corredor do intervalo. Anos mais tarde, gravaria um clipe de gratidão, sem desconfiar que tinha te atravessado ambos os rins com a mesma flecha; os professores de educação física - dois cretinos - ofenderiam-se por teu desrespeito à perfeição de suas diabetes; o fraco, o feio, bicha! E tu, tendo de dividir teu mundo com aqueles tipos de merda.

Enviaste mensagens ao que consideravas teu amigo, para contar de tua conversão à religião dele, e foste conduzido ao papel de irrelevante. Sequer desejou a ti que fosse para o inferno, fazer-lhe companhia.

Lembras com perfeição do dia em que Fernando te disse: “Convido-te para minha festa, mas contra a vontade da maioria, que quer te esquecer”. Naquela noite, foste a materialização do ridículo. Não somente te arrumaste para ir um lugar onde não eras bem-vindo, como desperdiçaste uma Sprite dois livros com péssimas companhias.

Não sejas tu o Ideal. E agradece.

Sgarbe para 2022; Carta seis

Reflexões pessoais revelam pessimismo sereno, coragem diante do desejo e busca por autoconhecimento em ano monotônico.

Tempo previsto
11/4/2025

Em 2022, tive a experiência da mais deliciosa monotonia. É como se. Justamente. O “como se” da literatura. É como se eu tivesse aplicado filtros de cor, de redução de ruído, tivesse baixado a luz, diminuído o contraste. Foi um ano deliciosamente normal, o que, para mim, significa que aprendi muitas habilidades novas, e poderia dizer: se não nos vemos há muito tempo, é possível que eu tenha mudado muito.

Eu me ocupei prioritariamente da política, para a qual dedico duas dissertações (uma pior que a outra). Também assentei em mim o que chamo de “pessimismo sereno”. Acho graça no tanto que, humanos que somos, somos capazes de errar por mera burrice (por ignorância menos, mais por burrice). Nem mesmo um gato falando pode ser mais engraçado.

Discordei de praticamente tudo que li no Instagram. Levados às últimas consequências, aqueles conselhos podem destruir anos de processo civilizador. O mundo, pelo menos no meu ver, precisa de mais gente conversando, mais gente se atrevendo, mais gente dizendo que sim ou não sem medo. É bem o contrário da vida narcísica.

Não existe cultura ou civilização em vidas que vivem para si mesmas. Estão ainda na onipotência do pensamento animal. Às vezes, são nossos colegas de trabalho, às vezes um amor, um amor da família, que pena para todos nós. A simplificação dos memes quase sempre me remete ao riso da forca.

No fim das contas, o que vale é uma certa coragem diante do próprio desejo. Não conheço uma única alma que tenha obtido sucesso sem confessar a si mesma que pode pouco e sabe menos ainda. Tem uma potência enorme nessa conversão à gente mesmo. “Mas não tem revolta não, só quero que você se encontre”. Conheci o homem que ajudou Peninha a escrever essa letra. Ficamos sentados em um banco de madeira, lembrando que a vida é também amor, se é que não é só amor.

Diante de Deus e seus anjos, diante de Satanás e seus demônios, diante da Igreja e da Grande Nuvem de Testemunhas, diante da mais pérfida viela de um bairro tomado pelo tráfico, diante das prostitutas da Visconde de Guarapuava, diante dos sacerdotes de todas as religiões, diante do mundo sem fé e da Santa Sé, diante de Nossa Senhora e São José, e de todos os apóstolos vivos ou mortos, diante dos carros da rápida, das pedras do Passeio Público, diante dos bolsonaristas em frente ao quartéis, diante dos bolsonaristas com sinal trocado nas universidades, diante da foto de Patryck impressa em PVC, diante da pior coleção de livros que uma casa pode ter — a da Tag —, diante de mim, confesso: eu não posso mudar o mundo no grito (embora eu seja excelente de grito).

Eu sei no fundo e na superfície do meu espírito que podemos ser muito felizes, antes de morrer. Que a vida humana pode valer a pena quando damos o primeiro beijo, ou quando fazemos planos eternos. A mensagem é:

“Sabe o que acontece quando a ganância toma o controle: quanto mais você tem, menos você é. A sabedoria sai à rua e grita, e no meio da cidade, faz seu discurso”.

As infinitas ajudas que recebo não têm parado em mim, elas, abundantes que são, têm corrido rios glamurosos e fios de vida em valetas podres. A vida que resiste a água de bateria, a viagens espaciais no vácuo, e a profundezas salgadas e sem oxigênio dos oceanos também dá as caras nas sessões de análise. Quanto mais encontro recursos para destruir as ideias dos outros, mais me aposso da misericórdia que é recorrentemente oferecida a mim.

Quem eventualmente pensa que faço parte de uma grande trama está redondamente enganado. Quem eventualmente pensa em me envolver em uma grande trata está perdendo tempo. Minha vida é realmente indiferente para coisas humanas que não sejam ligadas à grandeza de nossa divindade. Se eu morresse agora, e o julgamento final fosse uma única pergunta, qual fosse “você foi feliz?”, minha aprovação viria da resposta “veja bem, apesar do Senhor não ter sido exatamente claro a maior parte do tempo, eu fiz tudo que sabia”. E pronto. Vocês poderiam imprimir fotos minhas junto à “Novena de São Sgarbe”. Do primeiro ao último dia de minha Santa Novena, vocês terão de rezar:

“Eu não sou o Bono Vox, nem a Madonna, sou uma pessoa essencial para as pessoas em volta de mim. Para eu alcançar [coloque aqui sua intenção], preciso acordar cedo e dormir cedo, ter uma agenda organizada, e me desviar ao máximo de jogos psicológicos. Pela intercessão de São Sgarbe, que Deus deixe de ser um pai autoritário e vingativo, e passe a ser alguém que faço feliz. Amém”.

Pouca coisa pode resistir a uma certa insistência. Se a porta não abre de jeito nenhum, nem com reza, nem com feitiço, nem com todos os efeitos lúdicos e especiais, ali não está o nosso caminho. “A benção de Deus enriquece e não traz dores”. Se aquele senhor mudou de ideia em relação a manter a própria palavra, é uma questão dele rever os próprios princípios.

Conheço cada vez menos de Deus, mas isto eu sei: ele dá preferência a quem se entrega. É melhor dizer “eu não vou” e ir, do que ser o primeiro da fila e não aparecer para o trabalho. Esses dias, disse a ele, “e o Senhor é o mais hipócrita de todos”. Como de costume, eu estava errado. Mas acho que ele entendeu o recado.

Sgarbe para Akel; Carta cinco

Carta intimista de Sgarbe reflete sobre perdas recentes e traz questionamentos pessoais sobre espiritualidade.

Tempo previsto
11/4/2025

Depois da semana em que velei um avô e enterrei uma amiga, sem contar o padrinho de Ata, natural que se fique mais dentro. Voltei a perguntar sobre mim quando li em um livro de McLuhan: “Façam circular o boato que Deus está vivo”. Não que seja preciso morrer alguém para que em mim haja perspectiva. Mas chorei seco nos últimos dias (acho que não foi só por coisas de fora).

Leia quem quiser, obrigado pelo acompanhamento, esta é para mim. Andar ao lado deste buraco exige alguma coragem, para que não se tropece para o fundo, por ridícula simplicidade. “Seu pior medo é o que lhe sobrevém”, dizia o amigo Marcos, no tempo em que eu o levava exclusivamente a sério. Mas não se engane, Marcos. Nunca estive tão forte.

Tenho lembrado muito de Gabrielle e Dudson. De nossos desenhos assimétricos, das madrugadas incansáveis, quando decidimos como seria o futuro, com quem, com todos aqueles desejos de matar e morrer. Com isso fomos nos tornando adultos, com muita naturalidade. Mas o ponto exato foi nossa concepção de tricotomia – corpo, alma e espírito – a qual se expressa neste momento em uma guerra que desanda tudo. Um assunto predileto.

Tinha explicado aos amigos uma de minhas hipóteses sobre a vida com uma animação 3D. Uma bolinha de tênis percorrendo um tubo transparente, partindo de uma extremidade à outra e então fazendo o caminho contrário rapidamente, tão rapidamente que seria impossível destacar uma imagem para determinar a localização exata. Extremidade positiva e extremidade negativa. Mas falamos agora de tricotomia. Os assuntos da dualidade estão previamente explicados, em particular pelo que se pode aproveitar das religiões orientais.

De um lado a carne, do outro o espírito, uma alma no meio, fazendo sanduíche. A diferença é que agora vejo tudo em detalhe, primeiro um lado, depois o outro, ainda em movimento, mas com a impressão mais contemplativa.

Escrito em 2011.

Sgarbe para; Carta quatro

Carta íntima de Sgarbe explora angústia existencial, memórias de luto e a busca por sentido em meio à dor.

Tempo previsto
11/4/2025

Porteiras gripadas, caminhos guiados por pinheiros impávidos, silêncios tão ambíguos e uma lua fria. Cheguei ao Limoeiro seis anos depois da primeira visita, quase sem lembrar de quanto esse deslocamento é capaz de me acolher para me colher.

Perdi a conta das palavras que deixaram de me expressar nesses anos. Passaram-se tantos anos desde a enorme prevenção que era me garantir com palavras. Hoje, não me garanto com nada. Um certo correr por fora de todas as coisas vai me dando a sensação de que me mantenho vivo, e com alguma pulsação fora do corpo. Mas sempre daquele jeito.

Chove bastante, todas as janelas escorrem daquele jeito, meio triste, meio brega. Estou sem sinal para garantir o trânsito de minhas epifanias ridículas. Aliás, o ridículo, o cruzar o ridículo tem sido um tema em particular. Deus falou comigo sobre isso no começo da semana, fazendo um seguro comigo.

Sempre vivendo escondido, amando escondido, como se a minha natureza não fosse apropriada. Ora. Como pode a natureza não ser apropriada, se natural, se natureza. Essa constante, imutável, invencível luta contra a permanece condição havia chegado ao fim. Foi quando me dei conta de que tantas convicções tinham chegado ao fim. A luta por si mesma era uma engenharia para a vida, era algo ao qual eu tinha me agarrado para viver e que agora tinha se desmontado feito uma carroça velha. Era possível ouvir o barulho das peças se amontoando umas sobre as outras na irrecuperável sinfonia da calamidade. Tinha chegado ali a hora de morrer em definitivo para aquelas expectativas falsas de transformar o mundo ou o mundo dentro de mim. Eu estava cansado em definitivo, tinha concluído que um plano para morrer a carne seria mais útil que um plano para viver a alma – muito embora tentativas anteriores de tanto um coisa quanto da outra tivessem falhado antes, agora, um tipo de resignação sobre a vida e determinação sobre a morte me seguiam continuamente. Eu estava disposto a colocar um fim em tudo aquilo, como de fato o fiz.

Aos 30 anos, a realidade tinha se demonstrado assustadoramente dura para mim, porque qualquer devaneio malsucedido traria consequências terríveis. Era preciso pensar doentiamente com foco na destruição completa, sem que as estruturas do entorno fossem prejudicadas. Um tipo de implosão. Difícil de acontecer quando se é um executivo de comunicação e correspondente do noticiário internacional. Ter pensado nesse texto em uma fantasia autobiográfica, testemunhal, fez cair drasticamente a qualidade dramática deste relato. Em vez de relatar a flagrante angústia destes dias, fiz o que estava apegado a fazer nas últimas horas, contar títulos e afazeres a fim de esquecer as principais razões. Aliás, é atrás delas que me arremessei frente a todas as misérias que me vesti, que me alimentei, que passei a noite. Atrás das razões é que estive maior e menor, é que estou agora. Atrás de uma razão é que morri. Minha mente se perturbou quando finalmente deitou na cama, viu-se novamente sozinha, lembrou que pretendia escrever um pouco antes de morrer. Lembrou que o desejo que tem é de morrer. Que a morte está à espreita e Deus observa de perto, guarda, salva, uma hora dará um sinal. Ontem ou hoje, repetiu, uma resposta está a caminho.

A resposta me encontrará prostrado. Mesmo segurando no braço do Eterno, sinto a demora no levantar. Senti saudade do dia em que me chamaram de mulher. Em que me fizeram sentir que eu era outra coisa que não essa aqui. Não esconderei nada do Eterno, esse é meu acordo com ele, assim ele manterá um novo trato comigo. Ao mesmo tempo, isso me devasta, silencia cada sinal que eu possa emitir. Poe-me morto. Põe-me, sobretudo, com vontade de morrer.

Voltou a angústia, mas transformada. Analisada, penteada, limpa, de cara limpa. Antes se apresentava embriagada, de pernas trançando e sugerindo ininteligências. Agora vem só, feito uma viúva sóbria na manhã do enterro, sem máscaras.

Era necessário localizar aquilo tudo, uma vez que as principais prisões estavam estabelecidas. Quero dizer, o tempo estava estabelecido, a condição mais irreversíveis, mais estável – preocupantemente, mais preocupantemente estável – estava estabelecida. Então as normas de descrição se aplicavam de dentro para fora, de cima para baixo. Era possível ver a professora de português em pé, em minha frente, gesticulando lentamente, no esforço de me tornar um redator menos estúpido na hora de desenhar a localização exata da minha tristeza. Ela certamente teria alguma compaixão por mim, boa que era, ao descobrir que fui engolido pela mediocridade das tentativas mais simples, e que quase não arrisquei para dizer que o coração da minha tragédia pulsava de um beijo roubado.

Ainda não tinha me dado conta de em que pé estava minha recuperação, ou se havia ainda alguma recuperação rolando. Aliás, termos como esse, recuperação, eram os últimos que me interessavam. Tantas recaídas – aliás, uma sucessão tão amarga, recorrente e fatigante que me tinha deixado à morte – tinham-me tirado qualquer perspectiva de que eu ainda vivia para viver. Era como se eu estivesse jogando para cumprir a tabela sabendo do rebaixamento iminente. Nunca gostei de futebol e não faço a menor ideia de por que fiz essa analogia pobre com um esporte que não me interessa em nada.

Do dia em que enterrei tia Josmara lembro de poucos detalhes. Tinha mantido pouca coisa no primeiro plano, para que a superficialidade fosse aquele tipo muito apropriado de anestesia. Era o jeito de aguentar um funeral católico. Inicialmente, tentei evitar minha ida, mas as obrigações cívicas me tiraram da cama perto das três da manhã. A voz do meu irmão rasgou a noite fria dizendo com uma euforia de manchete “a tia Josmara morreu”. Que sorte a minha não ter o destino dela, o de estar sem ninguém que a amasse naquele momento. Levantamos da cama e fizemos um memorial, uma foto e velas de festa boiando sobre a água rasa e lenta de uma decoração. Teria sido suficiente aquela macumba. Mas era preciso, não por mim, mas pela vida dos outros, que eu sofresse publicamente. Não passou muito tempo até que meu pai passasse de carro me pegar. Ele não quis ir comigo. Então, o caixão dela se arrastou no chão da cova, fazendo um som pesado, o último do corpo inerte. Madeira esfregando sobre cimento, terra, areia. Então eu aprendi qual o som da morte.

Sgarbe para Ualid; Carta três

Carta breve e peculiar de Sgarbe reflete sobre culpa, felicidade e um encontro inusitado com um "canibal curitibano".

Tempo previsto
11/4/2025

Meu medo mais recente é estar sentenciado a uma felicidade maior que a de meus irmãos. Ironicamente, sinto culpa. E culpas católicas não se dissipam em cem anos. Além do mais, acho que não tenho mais cem anos, porque abusei de remédios na adolescência, e a saúde hepática, ah, que piada.

Nas mesmas horas que recebo notícias suas que chegam de Paris, conheço em Curitiba um homem que tem vontade de comer carne humana. Estive, meu amigo, todos esses anos, sendo preparado para ler tal coisa antropofágica no quinhentismo. Mas, agora, assim, um canibal do Portão, não sei.

Sempre que lembro de ti e de Cassiana me sinto religioso — In a good way.

Até depois.

Sgarbe para Cida; Carta dois

Em carta afetiva à amiga Cida, Sgarbe encontra consolo espiritual e inspiração poética em versos de Vinicius.

Tempo previsto
11/4/2025

Cida, hoje é sábado, e é também uma véspera importante para os que acreditam na ressurreição dos mortos. Não há coincidência nisto: que tenhas uma celebração pessoal no dia do descanso sagrado. Quanto penso em ti, tenho vantagens demais, quais sejam as felicidades e os desejos que me proporcionas com bondade. Tem tantos anos isso, sem contar os tempos que estão fora do relógio.

Tens, minha querida amiga, em tua maior parte, uma consciência tão plena de que o mundo está girando do jeito que deve, e de que é preciso seguir daqui pra frente, que transformas essa consciência em algo que me serve pelo menos duas vezes (primeiro, um fragmento para o progresso espiritual; depois, que lembro de ti, para dar um exemplo, toda vez que me embolo no texto — um aspecto prático da originalidade de tuas rotinas — tu vens até mim, e quase te ouço com os ouvidos naturais, na brandura de teu conselho: “segue o assunto, Vinícius”). Vinicius de Moraes. O dia da criação. Rio de Janeiro, 1946:

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Sgarbe para Ety; Carta um

Carta confessional de Sgarbe revela tristeza profunda com reflexões pessoais sobre felicidade e autodestruição.

Tempo previsto
11/4/2025

Querida amiga Ety, escrevo com o coração partido. Há poucas horas, tomei o cuidado de fechar a boca do impulso quando me perguntou: “O que é felicidade?”. Qualquer resposta parece ser, por mera necessidade da linguagem, da palavra, uma tristeza em si mesma e, logo, um tipo de contradição para a pergunta. Gosto da ideia de que príncipes materializados se tornam menos capazes de nos governar – uma ideia roubada da literatura francesa quando se atreveu a classificar os persas. Estamos, nestes dias, com calor fora do corpo.

O copo é um problema para alguns amigos chegados. As bebedeiras sem fim terminam quase que invariavelmente em grosserias semeadas à sorte, e trabalho para quem está em volta – recolher desafetos, cacos e garrafas pela metade. Isso está me consumindo – porque não gostaria de ver gente que se poderia salvar destruindo o próprio corpo e, junto a isso, todas as relações que direta ou indiretamente estão ligadas a tal corpo. Pensei, sobre a autodestruição desses, na expressão “pérfido”, porque preferem derrubarse-se a tão somente deixar-se em pé.

Adeus.