Rejeições moldam quem somos e ensinam a contornar obstáculos internos no amor
Ancorado em autores psicanalíticos, o texto filosofa sem negar a dor viva do presente.

Se de fato somos o que nos falta, como é mais ou menos a ideia lacaniana dessa coisa, somos também as vezes em que fomos rejeitados. Isto é, se uma rejeição se chama propriamente por esse nome é porque assim foi sentida e, por consequência, é o produto de algo que se retira da possibilidade de existir.
O pai que se retira, e que então retira a possibilidade de existir a filiação. O amante que se retira, e que então retira a possibilidade de existir aquele amor a dois. O convite que se retira, o convite que não chega, ou a vida resumida a convites para encontros que não passam de reencenações de rupturas ancestrais, porque seríamos, ou somos, aquilo que nos falta.
Há algumas semanas escrevi uma espécie de artigo inaugural para a seção de Análise Transacional deste site, e não foi possível, e sequer foi desejado, impedir-me de reconhecer o quanto a vida de um analista está sujeita a certa variação emocional que, às vezes, é cômica. Isto é, nós, analistas, quando devidamente analisados e dispostos a sair do divã para ocupar a poltrona, desenvolvemos alguma compreensão dos fenômenos psíquicos mais ou menos comuns. Eles já não nos surpreendem em nada. Recorrer ao expediente de uma rejeição primordial é manjado.
Naquele artigo, uso uma cena de cinema para ilustrar a tragédia de se ter um encontro em família – ou, melhor, um encontro que nos arrasta às experiências parentais. É a faísca do “isso lembra minha mãe”, “isso lembra meu pai”, “você parece meu irmão”, “ela está fazendo de propósito”, que explode o barril de ocultismos comunicacionais e contamina as relações delirantemente. Nossos sentimentos são absurdamente mais poderosos para nos guiar do que nossa razão. Quando Freud explicita esse enunciado em O mal-estar na cultura, parece ter a mesma sensação de miséria que nós.
Em duas oportunidades inesquecíveis ouvimos de pessoas que amávamos que nossa visão analítica da vida as ofendia. Honramo-las pela coragem de nos informarem por qual razão somos preteridos em determinados grupos. Por falar em comédia, é como se na cena da transfiguração Pedro pedisse a Jesus para parar com esse papo de filho de Deus.
Seria inconsequente não trazer do mesmo Freud a consideração de que o número de pessoas com quem convivemos tende a diminuir – acrescentamos que “espantosamente”, para os que obtiveram sucesso em suas relações pessoais ao longo da juventude. Realizar psicanálises selvagens ou qualquer selvageria analítica pode ser uma atitude violenta quando isso respinga em coisas que nos lembram quem somos. Daí se teria de ter a atitude humilde e coerente de responder a si mesmo: “de que modo essas palavras me afetam?”.
Procurar por essa resposta nos parece, hoje, uma das mais seguras respostas ao desconforto de sermos atravessados por emoções que não foram solicitadas. Mas, de todo modo, fica também o prazeroso sabor de se aprender um ofício. Enquanto formos aprendizes do trabalho que é amar e ser amado, haverá sempre a glória de se ter aprendido a fazer algo que não se sabia antes. Nesse caso bem específico, a glória de ser água, de não se discutir com a pedra. Diante da impossibilidade de desfazer um impedimento ao curso, contorná-lo e por ele passar sem pequeno ou grande esmorecimento.



