Responsabilidade interrompe Jogos Psicológicos que alimentam sofrimentos
Em nossa cultura saturada de conselhos sobre desenvolvimento humano, emerge a questão "por que, apesar de tantas ferramentas disponíveis, repetimos padrões destrutivos em nossas relações?". A Análise Transacional oferece uma resposta poderosa e desconcertante: nós jogamos. Não por diversão, mas para manter nossas histórias de vida em pé, em um ciclo previsível que chamamos de Jogo Psicológico.

A era dos influencers e das dicas rápidas na internet nos apresenta um curioso paradoxo. Por um lado, uma abundância de informações sobre bem-estar; por outro, uma crescente superficialidade na abordagem das complexidades humanas. Em nossa formação, aprendemos que um profissional, seja um analista ou um jornalista, constitui-se por um rigoroso processo de validação, um crivo de competência que garante a responsabilidade sobre o que se comunica.
Um contrato profissional claro indica o que foi estudado, e quais habilidades foram desenvolvidas para conduzir outros a um lugar de desenvolvimento. Contudo, o que vemos frequentemente nas redes sociais é um oposto: um desfile de pitacos irresponsáveis. Essa avalanche de ideias rasas nos desafia a olhar para tal parafernália com um ceticismo saudável, e a buscar uma compreensão mais profunda dos mecanismos que realmente regem nossas vidas. Um exemplo clínico ilustra a urgência dessa distinção.
Recebemos recentemente o relato sobre um casal em desespero que busca uma sessão de emergência após uma briga que o levou à beira do divórcio. No entanto, anteriormente esse mesmo casal esteve na sala de terapia, e ignorou o que ouviu. A desconfiança que emerge é que ele não procura uma solução, mas uma nova rodada de um jogo que batizamos assim: Tentamos de tudo. Ambos, ao obterem mais análises que não consideram em um nível suficiente para uma mudança, podem, enfim, dizer que nada deu certo, e reforçam um roteiro de fracasso. Esse fenômeno nos introduz diretamente a um dos conceitos mais importantes da Análise Transacional: o Jogo Psicológico.
‘Respeita minha história’
Compreender o que é um Jogo Psicológico não é um exercício trivial; é um conceito que, se levado às consequências de sua evitação, pode nos proteger e nos guiar para relações mais produtivas, saudáveis e, acima de tudo, pacíficas. Conforme definido por Eric Berne, o Jogo Psicológico é o que fazemos para manter nossas histórias de vida — nossos roteiros — em pé.
Consideremos o caso de uma analisanda que, de tempos em tempos, tem a sensação de que sua vida está para desmoronar. Nesses momentos, ela sente a necessidade de que alguém lhe diga exatamente onde erra. Ela busca novos analistas, sacerdotes, líderes, ou amigos que cumpram o papel de apontar suas falhas. Curiosamente, apesar de anos que repete esse comportamento, ela não muda. Não parece lógico que o desejo fosse, de fato, utilizar essa delação para se transformar? A análise revela que não.
O incômodo dela é perceber que, ciclicamente, recorre aos mesmos expedientes. A investigação de sua história mostra que ela cresceu em uma casa onde a mãe passava o dia criticando-a, e o pai, ao chegar, a agredia fisicamente. Para uma criança sem parâmetros, aquela era a definição da vida humana. Ela existia para a mãe quando era criticada e existia para o pai quando era agredida. Anos depois, com uma fome de existir, ela reproduz o padrão infantil, pois foi ele que a manteve viva.
Esta é a informação dura e factual com a qual precisamos lidar: manter o sistema como está, por mais doloroso que seja, garante a sobrevivência. A vida, em sua forma mais elementar, é extremamente resistente. Ela existe na água de uma bateria e nas profundezas abissais do oceano, sem luz nem calor. Para mantermos um padrão de sofrimento, precisamos de uma excelente razão — e a razão que encontramos é que ele funcionou até aqui. É como na obra genial de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira: as pessoas presas, depois de tantas tentativas frustradas de sair, desistem. A revelação devastadora é que poderiam ter saído há muito tempo. Nossas histórias familiares têm um pouco desse caráter.
Passamos a infância e a adolescência em prontidão e rebeldia para nos livrar de padrões dolorosos e, após fracassarmos, desistimos de tentar. O que não percebemos é que aquelas pessoas — nossos pais, em suas versões do passado — não estão mais aqui para nos humilhar, criticar ou bater. Mas nós, muitas vezes, continuamos presos no mesmo lugar.
O beisebol da morte
A dinâmica de um jogo psicológico pode ser compreendida por meio do triângulo dramático, que apresenta três papéis principais: vítima, perseguidor e salvador.
Imagine uma reunião de trabalho. O estagiário chega atrasado e interrompe o grupo dizendo: “Desculpem-me, o pneu da minha bicicleta furou e ainda precisei ajudar uma senhora que foi assaltada”. Ele se coloca, nesta ilustração, como vítima das circunstâncias. A isca jogo, conforme Eric Berne descreve, está lançada, pronta para espetar uma fraqueza no outro. O chefe reage, e assume o papel de perseguidor: “Escuta aqui, toda vez a mesma desculpa!”. O jogo se estabelece.
Se continuar assim, a relação tende a se deteriorar. Mas uma característica marcante do jogo é a troca de papéis. A vítima (o estagiário) pode, de repente, tornar-se salvador: “Calma, chefe, não precisa falar assim. Eu sei que o senhor está sobrecarregado”. O chefe, então, muda de perseguidor para vítima: “É isso mesmo, sempre sobra para mim. Desculpe ter falado assim com você”. Por fim, o estagiário pode ir à posição de perseguidor: “Todo mundo comenta que o senhor tem esse jeito explosivo”. Seguem alternando papéis até que o jogo se complete.
A fórmula de um jogo é sempre a mesma: uma isca bate em uma fraqueza do outro, o que gera uma série de trocas de papéis, a mudança, e culmina na recompensa (payoff). E qual é a recompensa de um jogo? O mal-estar. É quando nos sentimos mal, frustrados, incompreendidos, com raiva. Quem joga, perde. Ambos (ou todos) os jogadores saem arranhados, sujos, queimados. E por que jogamos? Porque, ao obter a recompensa, sentimos o que nossos pais nos ensinaram a sentir. E, quando sentimos o que eles nos ensinaram a sentir, nós nos sentimos vivos, e confirmamos nossa posição no mundo.
Medir a febre
Os Jogos Psicológicos têm graus de intensidade. O de primeiro grau é socialmente aceitável, como provocações entre amigos em um bar. O de segundo grau ocorre a portas fechadas; ninguém mais sabe o que acontece na relação, e a violência psicológica se instala. É quando o marido diz "ninguém gosta de você na minha família", e a esposa não tem mais como verificar se é veidade ou não, pois já foi isolada. O jogo de terceiro grau, como Berne adverte, termina na justiça, no sanatório ou no necrotério. É o amigo que mata o amigo, o assassinato por dívida, o feminicídio.
Dois jogos são particularmente comuns e esclarecedores. O primeiro é Por que você não? Sim, mas. Uma pessoa apresenta um problema, e os outros oferecem soluções ("Por que você não faz tal coisa?”), que são sistematicamente rejeitadas (Sim, mas isso não vai resolver"). O objetivo não é encontrar uma solução, mas permitir que o Estado do Eu Criança frustre e confunda as figuras Parentais que oferecem ajuda. A rodada termina quando todos se cansam e a pessoa pode confirmar seu sentimento de que seu problema é insolúvel.
O outro é Se não fosse por você. Uma pessoa com medo de água se casa com um parceiro ciumento que a proíbe de ir à piscina. Ela então reclama: "Se não fosse por você, eu poderia tomar banho de piscina". Ela evita seu próprio medo (numa vantagem psicológica externa), responsabiliza o outro, e ainda ganha prestígio social como uma mártir que suporta um marido tirano (vantagem social externa).
Reconhecer esses padrões é um tipo de primeiro passo para a autonomia. Em uma era que nos estimula a perder o hábito da introspecção — trocamos os diários secretos por posts públicos —, somos convidados a um exercício de honestidade.
- O que nossos pais nos diziam quando começávamos algo novo?
- E quando fracassávamos, o que nos diziam?
- Que sentimentos emergem ao lembrarmos deles, e em que situações atuais esses mesmos sentimentos aparecem?
As respostas a essas perguntas podem revelar pelo menos parcialmente a matriz dos jogos que insistimos em jogar. A proposta da Análise Transacional é nos dar os recursos para que possamos, enfim, sair do tabuleiro. É um convite para deixarmos de ser pessoas com uma idade emocional de oito anos em um corpo adulto, e assumirmos a responsabilidade por criar relações de intimidade genuína.
Assista
Neste trecho de um workshop, explico como essas dinâmicas se manifestam. A gravação é um registro documental de um encontro, parte da Preparação de Pais A.dot. A qualidade do áudio foi priorizada para preservar a clareza da exposição, ainda que a imagem tenha as limitações de um registro ao vivo.


